Hoje é o dia do meu
aniversário, um número redondo, com um zero oval, que pouco subtilmente me
lembra que a minha vida, se aproxima – se é que já não está – daquele ponto
oblíquo a partir do qual tudo desce. Uma vez mais o meu marido transferiu-me
dinheiro para que comprasse “alguma coisa de que gostes”. Começou há um par de
décadas, noutro aniversário redondo com zero oval, o valor foi aumentando na
proporção directa dos anos que se somavam a cada zero, da intensidade das
viagens e serões de trabalho dele, das brancas que acumulei e vou disfarçando
como posso, primeiro foram as madeixas que duravam três meses agora é um ajuste
de raiz a cada quinze dias, da curva da barriga dele, a que se costuma chamar curva
de felicidade, no meu caso é só indiferença, a mesma com que ele deixou de
saber o meu tamanho de roupa, as cores de que gosto e me ficam bem, o único
perfume de que gosto (caramba, é só um, será assim tão difícil de lembrar que
se chama Paris, a terra da nossa lua de mel, e insistir em comprar Poison e
Opium, perfumes de pêga barata?...) Hoje a secretária do meu marido vai
informá-lo que tem o jantar do meu aniversário às 20h00 no restaurante que eu
escolhi, que não é caro nem tem má comida e pior serviço, que não é fino nem
está na moda. Pago eu.
É meia-noite, regressei a casa
do jantar do meu aniversário. Foi um sucesso. Muito mais do que estava à
espera. Vesti um vestido comprado em Paris, na nossa lua de mel – é, ainda me
serve e fica-me bem, tem aquele tom de preto com o qual nunca me comprometo. O
meu marido não o reconheceu, apesar de mo ter oferecido há 25 anos, e,
simpaticamente (ironia fina, ler até ao fim) perguntou-me: “Vais para algum
velório?!”
A mesa teve que ser composta,
havia um convidado de última hora que a
secretária do meu marido desconhecia, de doze passámos a treze. Maus augúrios,
dizem que em mesa de treze morre o mais velho…
Não chegámos a provar a
comida. Ainda nos aperitivos, apresentei o décimo terceiro convidado, começando
pelo meu marido. Só quando lhe disse que era o meu presente é que o meu marido
começou a prestar-me atenção. Muita atenção. Imensa atenção. Toda a atenção. Expliquei-lhe
que os vinte anos de presentes em dinheiro haviam sido muito bem aplicados em
treinos personalizados de ginásio, voltara a caber no vestido de Paris, restaurara
a auto estima e estava a viver uma intensa lua de mel (que só não era segunda
porque a primeira tinha sido mais lua de fel), ia partir no dia seguinte, para
a romântica Toscânia com que sempre tinha sonhado. Já não consegui dizer-lhe que
as coisas dele tinham sido empacotadas, emaladas e enviadas para o escritório, que
não precisava de voltar a casa, que a fechadura tinha sido mudada, aliás a casa
era minha, presente dos meus pais, registada em meu nome ainda antes do
casamento. O meu marido teve uma síncope cardíaca e morreu no restaurante,
apesar de não ser o mais velho.
Ora digam lá se não correu
muito melhor o que estava à espera?!
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