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sexta-feira, 15 de março de 2024

ALGUMA COISA DE QUE GOSTES

 

Hoje é o dia do meu aniversário, um número redondo, com um zero oval, que pouco subtilmente me lembra que a minha vida, se aproxima – se é que já não está – daquele ponto oblíquo a partir do qual tudo desce. Uma vez mais o meu marido transferiu-me dinheiro para que comprasse “alguma coisa de que gostes”. Começou há um par de décadas, noutro aniversário redondo com zero oval, o valor foi aumentando na proporção directa dos anos que se somavam a cada zero, da intensidade das viagens e serões de trabalho dele, das brancas que acumulei e vou disfarçando como posso, primeiro foram as madeixas que duravam três meses agora é um ajuste de raiz a cada quinze dias, da curva da barriga dele, a que se costuma chamar curva de felicidade, no meu caso é só indiferença, a mesma com que ele deixou de saber o meu tamanho de roupa, as cores de que gosto e me ficam bem, o único perfume de que gosto (caramba, é só um, será assim tão difícil de lembrar que se chama Paris, a terra da nossa lua de mel, e insistir em comprar Poison e Opium, perfumes de pêga barata?...) Hoje a secretária do meu marido vai informá-lo que tem o jantar do meu aniversário às 20h00 no restaurante que eu escolhi, que não é caro nem tem má comida e pior serviço, que não é fino nem está na moda. Pago eu.

É meia-noite, regressei a casa do jantar do meu aniversário. Foi um sucesso. Muito mais do que estava à espera. Vesti um vestido comprado em Paris, na nossa lua de mel – é, ainda me serve e fica-me bem, tem aquele tom de preto com o qual nunca me comprometo. O meu marido não o reconheceu, apesar de mo ter oferecido há 25 anos, e, simpaticamente (ironia fina, ler até ao fim) perguntou-me: “Vais para algum velório?!”

A mesa teve que ser composta, havia um convidado  de última hora que a secretária do meu marido desconhecia, de doze passámos a treze. Maus augúrios, dizem que em mesa de treze morre o mais velho…

Não chegámos a provar a comida. Ainda nos aperitivos, apresentei o décimo terceiro convidado, começando pelo meu marido. Só quando lhe disse que era o meu presente é que o meu marido começou a prestar-me atenção. Muita atenção. Imensa atenção. Toda a atenção. Expliquei-lhe que os vinte anos de presentes em dinheiro haviam sido muito bem aplicados em treinos personalizados de ginásio, voltara a caber no vestido de Paris, restaurara a auto estima e estava a viver uma intensa lua de mel (que só não era segunda porque a primeira tinha sido mais lua de fel), ia partir no dia seguinte, para a romântica Toscânia com que sempre tinha sonhado. Já não consegui dizer-lhe que as coisas dele tinham sido empacotadas, emaladas e enviadas para o escritório, que não precisava de voltar a casa, que a fechadura tinha sido mudada, aliás a casa era minha, presente dos meus pais, registada em meu nome ainda antes do casamento. O meu marido teve uma síncope cardíaca e morreu no restaurante, apesar de não ser o mais velho.

Ora digam lá se não correu muito melhor o que estava à espera?!

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