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terça-feira, 19 de março de 2024

A LOUVADEUS DO CADAVAL

  - “Cigarros, dê-me cigarros…” – a mulher tremia convulsivamente, os dentes pareciam castanholas em mãos de experientes bailarinas num tablao andaluz. Com 30.ºC às 11h da noite, hipotermia não seria. Febre, também não, pois não tinha olhos vidrados nem transpirava, apesar, lá está, dos 30.ºC da noite de Julho. Um qualquer choque de origem desconhecida? Sim, devia ser isso. A mulher havia irrompido num repente, surgida como que dum nevoeiro londrino – impossível no nosso verão lisboeta, sabíamos, mas ainda assim seria a imagem que guardaríamos daquela aparição – uma mulher de quarenta e muitos, talvez cinquentas, cabelos dum cinza branco completamente desalinhado, surgida do nada, correndo como que se perseguida pelo demo, uma toalha de rosto presa  pelo braço esquerdo imediatamente acima do peito, deixando entrever uma nudez envergonhada a espaços – os espaços do esvoaçar da toalha -, a nudez manifesta e completa da parte posterior do corpo disfarçada pelas paredes e prateleiras da loja a que se encostava, numa tentativa de impossível pudor.

Demos-lhe os cigarros, ainda tivemos tempo de perguntar se tinha preferência de marca. Olhou-nos com olhos de quem não percebe se estávamos a gozá-la ou a falar a sério. Desistimos de querer saber e passámos-lhe um SG Lights. Ultra lights, aliás [tudo isto se passou antes de ser proibida a comercialização de tabaco dito light]. A empregada de turno apiedou-se da mulher, vestiu-lhe o casaco da própria farda e tapou-lhe as pernas com a toalha de rosto, obrigou-a a beber uma café duplo a que acrescentou um pingo generoso de aguardente.

Aos poucos, e depois de alguns cigarros fumados pela metade, as convulsões, incluindo as dos dentes, foram serenando. Só nesse momento é que os presentes se deram conta do inusitado da situação e todos, em simultâneo – isso comprovaram depois –, pensaram se não seria uma cena para os apanhados. Timidamente, e sempre pensando na hipótese de haver uma câmara oculta que exporia os seus ridículos ao mundo, começaram a fazer perguntas – como se chamava? “Branca.” – donde vinha? “Do Cadaval.” – Cadaval?! Mas estávamos em Alverca… “Sou do Cadaval, vivo no Cadaval, Alverca foi um acidente.” – [acidente grande, choque frontal com um comboio de camiões TIR, disso não tínhamos dúvida; a nossa curiosidade crescia] – acidente, D. Branca, caiu do carro em andamento? – pergunta nada esperta e ainda menos subtil da empregada de turno. Branca olhou-a com ódio e vomitou: “Carro em andamento precisava você que a atropelasse, sua cabra!” [Classe não era uma qualidade de Branca]. “Querem saber o que aconteceu, seus porcos de merda, querem?!” [Nem classe nem boa educação.] O segurança da noite olhava-a com espanto não disfarçado, com um fascínio misturado de incredulidade. Mais tarde, já depois de tudo se ter esclarecido, explodiria: “A gaja vem ter com o amante, em casa dele, f… na cama de casal, o gajo tem um ataque cardíaco [ficou com a boca ao lado, viemos a saber] quando ouve a mulher meter a chave à porta, a gaja salta pela janela [era, felizmente, um rés do chão], só tem tempo de agarrar na toalha rota e rasgada [passe o pleonasmo, acrescento eu], salta a vedação e aparece-nos aqui no posto, as vergonhas ao léu, pede cigarros, fuma como uma chaminé, não paga os cigarros nem o café nem o cheirinho, chama a Telma de cabra e nós de porcos! Olha que fineza a desta louvadeus do Cadaval!

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