Não havia quem não visse na Fadista um excesso da natureza – no tocantes às mulheres, por inveja, no que concernia aos homens, por desejo.
Aprendera da pior forma que o amor é coisa rápida, que acaba no instante
em que os homens saem de cima das mulheres – e que estes o fazem quase sempre para
regressarem ao lar, às mulheres e aos filhos.
(…) o desaparecimento (…) das
irmãs (…) mostrou-me pela primeira vez de forma vívida que a existência não é
senão um rápido deslize; e, desconfio de que, como no caso das meninas da Ti
Zulmira, não passa de um rápido deslize para parte nenhuma.
Quando acomodava o nó ao pescoço – desviado da traqueia, para doer menos
-, pensava, quem sabe, na justiça tão demorada, na paz tão imprecisa, no amor
tão dissoluto, enfim não sei em que pensava, mas, no escuro da noite, salão de baile
de morcegos e insectos vários, deixou pendendo um pesado conjunto de carnes e
ossos antigos dentro de um saco de camisa, calças e sapatos – o corpo
abandonado pelo espírito. (…) Junto à horta caída em orfandade, o rio, que só
no verão se demora um pouco mais a namorar as margens, nem deu conta do
ocorrido – corria estreito, mas apressado, com a promessa do mar e sem saber
ainda como era o sue cheiro.
Moram
numa rua escura
A
tristeza e a amargura
Angústia
e a solidão
Tantos
passos temos dado
Nós,
as três, de braço dado
Eu, a
tristeza e a amargura.
Ao fecharem as portas com o
passado que era tudo lá dentro (…) sentiam ter perdido o direito ao que tinha
sido sempre delas. Eram visitas em casa própria. (…) Era como se cada uma delas
continuasse a regar uma planta já morta. Viam-lhe o tronco castanho, os
bracinhos murchos e sem força, uma ou outra folha muito antiga a reduzir-se a
pó sobre a terra seca, não se lembravam já da forma, da cor e do perfume das flores,
mas, ainda assim, continuavam a pegar nos mesmos regadores de sempre e a
deitar-lhe água em cima , como se ainda ouvissem os pingos a cair sobre as
folhas verdes. Sabiam que planta alguma se mantém à conta de água e sol
nenhuns, tirando lágrimas e luz de filamentos de quarenta watts, mas o que lhes
restava que não fosse chorar? Há quem beba vinho para ignorar o presente e não
ver o futuro, há quem chore o presente porque ele não reflecte senão o passado.
A morte também pode ser ágil, comentava Baiôa, quando terminava de
contar esta história. Zé Patife acrescentou: aqui, na aldeia, os velhos morrem
muito.
A cada passa, a certeza de que
aquela gente iria desaparecer em breve. Tão frustrante era tudo aquilo. Sabia
que os dias, ao partirem, não regressavam os mesmos. Vinham com menos um aqui,
menos outro ali e menos outro além, cada vez menos gente.
(…) o tempo passou e nele acabou por intrometer-se o acaso, o metediço
habitual, que nunca desperdiça as oportunidades. E, assim, certo dia, alguém
soube, alguém viu, alguém contou, muitos mais souberam, outros tantos contaram –
enfim, toda a aldeia, toda a vila e toda a região ficaram a saber.
Tinha prometido a mim mesmo
não ir à taberna naquela noite, mas via os meus pensamentos a derraparem no
chão de ladrilho da minha casita e a esborracharem-se com estrondo contra as
paredes brancas.
Imprescindível era tirar aquela balbúrdia de ideias tão angustiante do
meu pensamento. Sentia-me a um pequeno passo de compreender o que sentem as
pessoas que querem que a vida os deixe em paz.
Porque saco vazio nunca se
aguentou em pé, a sabedoria popular, há séculos conhecedora da metempsicose,
explicou em conversas mais ou menos discretas que a alma de Maria da Luz,
naquele instante, tinha fugido do seu corpo, para não ter de continuar a lidar
com os tormentos que lhe haviam sido infligidos, e que, como sempre acontece em
casos semelhantes, o seu lugar tinha sido tomado por uma alma errante.
Deste homem, cuja casa uma marca de blocos de notas terá filmado com
autorização dos herdeiros, se diz ainda que parte das economias gastava-as num
cofre de um banco em que colocava volumes fotocopiados dos seus registos
anuais, que semanalmente ia policopiar a uma papelaria de Safara, o que desde
sempre me levou a perguntar-me onde estariam depositados os originais.
Eram gente já muito
anoitecida, que merecia descanso e não exigência física.
Andava há semanas a fazer contas à vida, até que, certa manhã, ao chegar
a casa para almoçar os restos do jantar da noite anterior, senti uma absoluta
exaustão, vi-me num estado de insolvência anímica. (…) Antes estivesse, por
exemplo, a sentir-me insolvente do coração, que é padecimento muito mais nobre.
Por que motivo não haveria eu então
de criar o meu próprio ministério da lentidão, da vida calma e tranquila, longe
de burocracias e necessidades constantes de encontrar alguma coisa? Aquele era
o local ideal para esperar pouco, isto é, as expectativas em relação ao mundo
não eram ali mais elaboradas do que desejar chuva ou sole que nascessem crianças.
Sustento e reprodução, prato na mesa e multiplicação – tudo o mais era enfeite,
vida de pechisbeque ou fancaria.
(…) sempre que sopra uma brisa lembro-me de te perguntar se não achas tu
que as árvores estão desde sempre apaixonadas pelo vento, já que de cada vez
que ele passa elas tremem e se arrepiam.
Formamos famílias, casando e
tendo filhos, para substituirmos a nossa família original, que a dado momento
desaparecerá. Não estamos, todavia, preparados para ver extinguir-se também essa
família – a que não nos é dada mas por nós construída.
Optou por morrer.
Sabia que, ao ver morrer
vizinhos e amigos, estes o deixavam a ele e ao mundo para sempre. Sabia que o
deixavam num cenário de injustiça, dado que os vivos se lembrariam dos mortos,
mas estes não teriam noção daqueles nem de coisa alguma. Por conta deste
inaceitável axioma único, desenvolvera um ódio insuportável à morte na sua
configuração evidente. Não era aceitável tamanha crueldade, mas nenhum sinal
chegava à terra – pelo menos dos que lhe eram dados ver – que mostrasse outra
evidência. Não era correcto ele recordar-se de décadas de convivência íntima
com uma mulher, de total partilha e compreensão mútua – em suma, ter uma
consciência plena do vivido a meias – e, à conta disso, sentir uma saudade
permanente sem correspondência. Anos e anos de comunhão em vida não deveriam
ter na morte uma ausência de resposta.
Até que a morte, que há muito por ali andava, levando uns atrás dos
outros, começou a sentar-se junto dele e falar-lhe ao ouvido. Dizia: aproveita
enquanto podes, que eu um dia destes venho buscar-te. Mas ele não podia já
aproveitar, não conseguia trabalhar, não tinha forma de fazer com que valesse a
pena. Interrogava a morte e perguntava-lhe quando, quando é que me vens buscar.
Só que a morte, já se sabe, não é de confiança e nada lhe dizia, nunca
respondia.
A sorte não é nossa. O acaso
não nos pertence. Demoramos, talvez, demasiado a entender isto. Somos apenas o
tempo que temos e o passado faz-se cada vez mais longo, disse-me ele, e é a única
coisa que interessa. O futuro, esse, só conta quando se é jovem, porque é do
tamanho das searas da minha infância.
Depois, deu-se o que sempre se dá, por mais que repetidamente nos
assustem com os anos mais quentes e secos desde que há registos: começaram as
sementes rebeldes vencendo a terra e a cada dia mais se via a vegetação desentranhando-se
, até formar campos cheios de ervas bravias, vivendo a promessa de uma vida
extraordinária. Mais tarde, passariam do verde ao amarelo, recuperando a
memória do trigo. Veio, de seguida, o calor, noites e dias se passaram, umas e
outros de tempo se alimentando, até que, meses mais tarde, o verão viajou para África
e o sufoco parou. Aconchegadas pelo vento, as árvores fizeram companhia uma às
outras nas noites frias.
Baiôa sem data para morrer,
Rui Couceiro
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