(…) quando amamos
apaixonadamente temos a sensação de que, no instante seguinte, conseguiremos
assimilar-nos a tal ponto com o ser amado que nos converteremos num só; ou
seja, pressentimos estar ao nosso alcance
o êxtase da união total, a beleza absoluta do amor verdadeiro. E quando
estamos a escrever um romance, pressentimos que, se nos esforçarmos e
esticarmos os dedos, poderemos roçar o êxtase da obra perfeita, a beleza absoluta
da página mais autêntica que jamais se escreveu.
Mas o sucesso e o fracasso não
são as únicas causas que acabam . silenciam ou entontecem um narrador. O poder,
já o vimos anteriormente também corrompe facilmente os escritores. Tenho a
sensação de que não se consegue escrever bem quando se transforma a vida numa
mentira; há autores que na sua existência foram autênticos canalhas e que, no
entanto, produziram obras maravilhosas, mas provavelmente não mentiam a si
próprios: deviam ser maus, mas consequentes; ou seja, é possível que a mentira
seja o verdadeiro antídoto da criação. Embora, se calhar, seja o contrário: se
calhar o que acontece é que a nossa vida vai por água abaixo quando convertemos
a nossa obra numa mentira.
«Que língua ouve o surdo-mudo?»
interroga-se brilhante e inquietantemente Bárbara Tuchman (Um Espelho Distante).
«O mais traumático nem sempre é o que
faz barulho mas o que fica mudo», diz Carmen García Mallo, amiga e psicanalista.
«e do silêncio faz barulhos».
(…) no jornalismo falamos do
que sabemos e na narrativa do que não sabemos que sabemos.
Os chamados loucos são aqueles
indivíduos que residem de uma forma permanente no lado sombrio. Não conseguem
inserir-se na realidade, carecem de palavras para se expressar ou as suas
palavras interiores não coincidem com o discurso colectivo, como se falassem
uma linguagem alienígena que nem sequer consegue traduzir-se. A essência da
loucura é a solidão. Uma solidão psíquica absoluta que provoca um sofrimento
insuportável. Uma solidão tão superlativa que não cabe dentro da palavra
solidão e que não pode ser imaginada por quem não a conheceu. É como estar no
interior duma campa, enterrado vivo
(…) uma das personagens, ainda
jovem e inocente, observa a rua através de uma janela e apercebe-se, de
passagem, de uma pequena imperfeição no vidro, uma bolha que o deforma, a
mancha de açafrão que faz com que aquela janela adquira realidade. Muitos anos e
muitas páginas depois, a mesma personagem, tão envelhecida como envilecida,
volta a observar o mundo através de outra janela. Mas eis que esse vidro também
tem um defeito, também exibe uma pequena bolha, que recorda alguma coisa à
protagonista, embora esta não saiba bem o quê. Onde vira ela antes uma coisa parecida?
Dá voltas à cabeça mas não consegue agarrá-la , embora a bolha de ar a inquiete
e a faça estremecer, lhe evoque paraísos perdidos, promessas traídas,
felicidades desfeitas. É um mensageiro do passado e chega carregado de dor e de melancolia. É o
maior, o mais maravilhoso, o truque admirável dessa delicada prestidigitadora
que foi Redoreda, é que o leitor tem mesmo a sensação que a personagem; também
ele evoca vagamente outra bolha cristalina aparecida anteriormente no romance,
e, embora não se lembre quando nem porquê, sente que estava relacionada com um
tempo feliz que já acabou. Consequentemente, também o leitor sente a nostalgia
infinita, a tristeza amarga da perda.
Seja como for, não é preciso morrer, nem transformarmo-nos em doidos oficiais e sermos trancados em manicómios, nem drogarmo-nos como junkie mais chunga, para ter vislumbres do Paraíso.. Em qualquer processo criativo, por exemplo, roça-se essa visão descomunal e alucinante. E também nos pomos em contacto com a loucura primordial cada vez que nos apaixonamos perdidamente. Eis outro assunto acerca do qual este livro fala: a paixão amorosa. Está intimamente relacionado com os outros três , porque a paixão talvez seja o exercício criativo mais comum da Terra (quase todos, algum dia, inventámos o amor), e porque é a nossa via mais habitual de conexão com a loucura. Em geral, os humanos não permitem a si próprios outros delírios, além do amoroso- A alienação passageira da paixão é uma loucura socialmente aceite. É uma válvula de segurança que nos permite continuar a ser sensatos em tudo o resto.
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