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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

A PROPÓSITO DE ROMA

Please Prove You’re not a Robot

Uma robusta câmara analógica, a minha adorada Nikon F4, dois quilos de perfeita engenharia de materiais feitos para resisitir a uma guerra, mas não ao nosso amor.

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Se fosse hoje e eu tivesse na mão um telemóvel, no momento em que me sento a observar quem passa, o mais provável era ter posto a atenção no ecrã e nunca ter reparado em ti.

Like Isso impressiona-me.

Swipe right Entretida com as múltiplas janelas, tu terias passado.

Follow Eu com os plhos postos numa imagem similar a outras imagens que a seguem e a antcedem.

Share Tu terias passado.

Watch later E eu não te teria visto.

Log In Como teria sido Buenos Aires sem nós?

Heart Penso em tudo o que perdemos enquanto olhamos para ecrãs.

Log Out Vou tentar pensar nisso da próxima vez que estiver na rua e me sentir ligeiramente aborrecida, ou perdida, e recorrer ao telemóvel por escape, protecção ou consolo.

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Se duas pessoas que um dia se quiseram tanto se sentam na margem de um rio sem concordar na direcção da maré, como é possível algum dia chegar a contar a história de um povo, de uma guerra, de uma revolução?

Se não concordamos com o início, como vamos concordar com o fim?

No calor de uma discussão, tu a dizeres que a verdade não interessa, só importa sermos honestos.

… Lisboa não chega a ser um lugar, é mais o princípio de todas as coisas. “Justamente. Não ´isso um filho?”

Entre a infinita tralha da world wide web, sempre me fascinaram as páginas de desambiguação da Wikipédia: Gosto sobremaneira da página de desambiguação do termo “desambiguação”. Havendo umas poucas fascinantes, a maioria destas páginas são estéreis, como o é a página de desambiguação do termo Roma. Nela se percebemos que se refere à capital da Itália, a Roma Antiga, ao Reino de Roma ((753-509 a.C.), à República Romana (1798-1799), e ainda a uma terceira República Romana (1849), e ao Império Romano (27 a.C.-476 d.C.).  Roma (mitologia) – figura da mitologia romana  e há a província italiana da região do Lácio. É o título de um filme de Fellini (1792), de Adolfo Aristarain (2004) e de Alfonso Cuarón (2018); uma estação de metro na linha verde, em Lisboa (…).

Falta dizer que é “amor” escrito ao contrário e um fruto deleitoso, em caso de til. Também não consta que “romance” começa por roma nem que por vezes também acaba.

Encetei a caminhada e rememorei o que mais me tinha impressionado quando te conheci, o teu corropio de propósitos. Actuas, desenhas, escreves, sobretudo poesia. Tens tantas certezas e eu tantas dúvidas. Entre as tuas múltiplas formas de escrita há uma em que talvez me consiga inscrever, e rapidamente a transformo num projecto comum. Trata-se de um guião para uma curta-metragem. É a história de duas sombras que se apaixonam.

(…) dois desconhecidos movimentam-se numa grande cidade e são manipulados nos seus trajectos pelas suas sombras, que tudo o que querem é estar juntas.

Perco a conta às tardes passadas a percorrer as ruas olhando apenas para as silhuetas – como se tocam, se desdobram numa escadaria, que formas desenham, a que horas do dia se estendem e em que instante quase desaparecem. Viciamo-nos em identificar vultos estirados no asfalto ou requebrados nas fachadas. Mesmo em casa, dia e noite, há sempre uma luz acesa.

Não te amava mais e não serias mais importante que outros antes e depois, só quem chegou mais perto. Deambulando por Buenos Aires a perseguir sombras, estás incrivelmente próximo. Tão próximo que o teu coração começa a latejar dentro de mim.

O problema é que o tio, um homem sisudo, bebe o dinheiro.

Há quem diga o seu nome várias vezes ao dia e isso é ser um bocadinho alguém. Aletra-se rapidamente no alfabeto do roubo, é astuto e observador.

A Recoba só lhe interessa que haja um passaporte para fora da sua vida. É curto e intenso: leva segundos  a bater e dura escassos minutos. Mas governa-te o dia. Come-te os sonhos.

O grupo vai esbarrondando.

A manhã fintou o quebra-luz e trouxe a certeza de não querer continuar a passear contigo como se nada fosse.

É certo que se fala português, mestiçado e corrompido, mas pouco se debate Portugal. Somos ubíquos, além-fronteira, uma das primeiras gerações cibernéticas. Éramos miúdos à entrada de Portugal na CEE, atingimos a maioridade com a viragem sincrónica do século e do milénio e quisemos ser do mundo: fomos bolseiros dos programas Erasmus, Leonardo, InovArte, SVE. Fizemos au pair e interrail. Desfrutámos de mobilidade facilitada como nenhuma geração antes, viajámos em comportamentos mínimos, dormimos em tendas na praia e na garagem de alguém, surfámos sofás gratuitos e as nossas emissões de carbono nunca nos perdoarão os anos passados a abusar dos voos low-cost. Mantemos amantes em capitais vizinhas, romances sazonais vividos em fins-de-semana pendulares. Amamos em várias línguas.

Eu amadureci, ele envelheceu.

(…) poderíamos debater o que é, para cada um e colectivamente, uma vida significativa. O que andamos aqui a fazer.

Ou a não fazer. Se fosse imperativo justificar as minhas opções de vida através de uma imperfeição moral, escolheria a preguiça. Esta sociedade até lida bem com os egoístas, confundem-se com os individualistas, mas mal com os preguiçosos – os amantes do descanso e da lentidão -, os contemplativos, os taciturnos, os nefelibatas.

A representação comum da mulher que não quer ser mãe é a de que é ambiciosa e focada na carreira. O oposto da preguiça, portanto. A ironia é que até este estereótipo representa uma conquista, pois só é possível graças à luta das gerações precedentes, que me permitem dar por garantida ambição de trabalhar e de me realizar além do marido e dos filhos. Isso parece hoje ganho, e um ganho; mas só quando não funciona em detrimento de, mas por acumulação. Podemos mas também devemos querer tudo: a profissão em que nos embrenhamos; família e prole numerosa, tanto quanto as amizades cultivadas com encontros regulares; e ainda salvaguardar o tempo para aquele jantar a dois e para o casal. A casa sempre tão impecável quanto o nosso visual e a nossa forma física; encontrar sossego para um mergulho interior. Meditar. Ah, e ainda as refeições atempadas; supervisionar os trabalhos de casa; não faltar à reunião de encarregados de educação; nem de condomínio; nem à estreia de uma peça; nem à vernissage da exposição; nem ao slow-opening de um novo rooftop com vista sobre a cidade que adormece – mas nós não. Porque ainda falta um hobbie, talvez começar uma horta no terraço ou aprender uma língua; ler; estar a par das séries do momento; informada sobre o mundo; expressar opiniões fundamentadas, referenciadas; contribuir para uma causa social ou ambiental. Importantíssimo é não abrir mão daquela noitada só com amigas igualmente comprometidas com os outros e radicalmente independentes. O resultado não é ainda uma geração de mulheres livres mas de supermulheres. Conheço um punhado: guerreiras, maravilhosas, com um sorriso de olheira a olheira, cronicamente esgotadas.

Não se recordam de ter existido entre eles outra vivacidade (…)Sobrevivem vestígios de um tempo em que a relação pode ter sido diferente, e é sobre essa ruína que erigem o seu edifício feito de hábitos, naquilo que oferecem de nocivo: a vacuidade, a irreflexão, a ausência.

Demorou a perceber que ficar presa ao passado é uma resposta ao medo do futuro.

Não fui embora no dia em que parti mas no dia em que cheguei a um novo sítio e decidi lá ficar. (…) As experiências são o que são; depois disso, é a memória.

Há quem nunca tenha conhecido a dor mortificante de um amor impossível ou por corresponder – penso. Isso será fruto de uma sensatez que naquele momento, invejo. Deve passar por abrir-se apenas àqueles que já nos escolheram; não arruiscar o corpo num combate com feras cujas garras estão por revelar. Matar antes de ser morto.

(…) Pensava no nosso amor ou no amor em geral? Disse que não imaginava a vida sem isso. Sem o quê?!, perguntaste confuso. Sem o salto de fé! Sem gostar de alguém a pleno peito, com repúdio a qualquer prudência, a cuspir no rosto da cautela. Olhei para ti, endireitei-me. Perguntei o que achavas tu do amor não correspondido e não hesitaste: é a forma de amor mais duradoura, até a mais pura.

A História de Roma, Joana Bértholo


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