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quinta-feira, 6 de julho de 2023

PÉROLAS

… um desses morgados bizarros, que cumprem o seu destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e endividando-se quase sem sair de casa – a comer e a administrar mal as terras.

Desiludido com essa turba de românticos quase todos picados de donjuanismo capaz de sacrificar-se a um dote do Pará ou dum bacalhoeiro da Rua Nova de São João, José Augusto caiu ca capital, onde teve o seu baptismo de salão. Quer dizer que o acharam tolo e não pôde convencer ninguém que não o era.

As suas relações com Deus eram mais cerimoniosas do que íntimas.

As melhoras tragédias começam com uma simples farsa.

Em São Bento juntavam-se os traficantes de todas as províncias – dizia ele. Portugal, no gozo duma podre tranqulidade, não sai do marasmo vergonhoso da sua cadência, hipocritamente desmentida por charlatães. Incapazes de administrarem uma aldeia. 

Um asno carregado de dinheiro trepa por onde quer.

O céu não se fez para os pardais, por muito alto que voem.

Já tinha afirmado que gostava de mulheres magras e trigueiras. Gostava, o que é uma maneira passiva de se comprometer com o lugar comum. Um lugar comum da especialidade, muito abundante no demi-monde parisiense onde os rapazes portugueses, ou, o que é melhor, de Riba-Douro, iam buscar o erotismo, as luvas e o modelo intelectual.

Estava bem disposto, a vida não lhe parecia tão sombria; tinha a perspectiva de ser proposto para a Academia logo que publicasse um romance sério. Sério queria dizer qualquer coisa de boçal para cavalheiros.

…Camilo não tinha acesso a esses cumes de elegância maciça, com tilbury e luvas de suède. Ficava-se pelos abadessados, em que se batia a redondilhas com os poetas lusos e Novais Vieira. Aquelas assembleias de freiras e de comerciantes que respiravam forte pelo nariz, e senhoras com a atroz mantilha e bandós chatos como iscas de fígado, deviam dar-lhe a noção da sua pequena importância, da sua miserável celebridade. Basta ver como Camilo usava a língua portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a fama e alma da Praça. (…) A maneira como dispõe as frases, como escolhe e arremessa as palavras tem muito duma estratégia guerreira. Utiliza o alfabeto como balas e os versos como trincheiras.

… quais as castas de uva de qualidade desaparecidas; donzelinho, terrantes, samarrinho, lourelo, abelhal, tudo eram castas extintas. E castas de homens, quais eram acabadas desde esse tempo de 1531 (…)? (…) Donzelinho, felgozão, bastardo, trinca-dente, burral, mourisco – de que casta?

O país sofria as consequências da bancarrota, e a política influía nos mais pequenos cidadãos, porque todos se acotovelavam nas suas intrigas, já não podiam criar distância entre eles e os seus governos.

O bom senso evita muitos aborrecimentos. Quase tudo é fraqueza numa mulher, até a virtude. O que sente não é amor. É a amizade que nasce do hábito. Há paixões passageiras que se devem mais ao hábito do que à atracção verdadeira. (...) Nela, o que domina, são os sentimentos de conveniência. Verá que tudo é diferente daqui a alguns dias. Agora vou levá-las a Vilar e espero que tudo se componha.

Era voz corrente na Feitoria que o coronel podia ter escrito um livro bem mais interessante se usasse as memórias da mulher em vez das suas. O que não era verdade, excepto numa coisa: dona Maria Rita era uma descontente, e os descontentes sempre têm mais que dizer do que os outros, ou por mais palavras. Grande parte da literatura dos tempos mortos da política é feita com o verbo dos descontentes.

“Os morgados de Riba-Tâmega só se salvam da loucura por meio da desgraça.”

“Sabes, José Augusto, que é mau ser patife duas vezes?”

A mediania é a religião dos juristas e das senhoras deles. Balzac disse: “Ela tinha espírito apesar de ser mulher dum jurista.” … Balzac não disse jurista. Disse notário. Mais exactamente: “Ela era-lhe fiel, apesar de ser mulher dum notário.”

Anda por aí, escreve muito. Namora com freiras com pasmosa convicção. É um Lutero sem doutrina.

A virtude é assim: descer depressa para fazer penitência cedo.

(…) estava ferido e sangrava pelos poros do orgulho, das ideias e da paixão.

Vida  sem sobressalto, parada, mas também sem atritos e sem nada de inquietante. Era igual à de tantos outros morgados que, entre o rodovalho na brasa e um mau passo com uma criada, vão moendo a colheita do matrimónio sem muitos horrores a deixar na memória das coisas críveis.

Amei-te sem para isso ponderar o que serias como amante. Não te pedi diploma de marido sofrível. São coisas como as que digo agora que destroem o que chamas “o santo lirismo do teu coração”. Construímos um péssimo romance porque a sinceridade não se dá com o ócio.

(…) há não sei que magia no sofrimento dos que nos submeteram pelo coração, que o seu destino nos arrebata para novas experiências. Assim se faz a legenda dos libertinos, que são, quase sempre, homens com a má memória das grandes indiscrições.

Diz o poeta que a linha da vida humana não é uma linha recta e que ele não voa como a flecha.

“Não quero acostumar o meu espírito a luxos de entusiasmo, que não posso sustentar-lhe”.

Lido em Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís 

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