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sexta-feira, 21 de julho de 2023

DE DEUS A TODAS AS OUTRAS COISAS

 … a primeira de uma série de perguntas. “De onde venho?” … “Como é que eu cheguei aqui?”

… uma segunda pergunta: “O que é que se pode saber de uma maneira geral? E que vantagens nos traz o saber adquirido? E será possível conhecer alguma coisa até à sua essência?”

(...) a terceira pergunta. “Como actuar? Como viver? O que fazer e não fazer?”

“Coleccionas perguntas. É bom. Tenho mais uma pergunta para a tua colecção, a última dessa série: Para onde vamos? Qual a finalidade do tempo?”

É estranho que Deus, sendo intemporal, se manifeste no tempo e nas suas transformações. Se não se sabe onde está Deus – as pessoas às vezes fazem perguntas destas -, é preciso olhar para tudo o que se transforma e se move, para tudo o que transborda da forma, ondula e leva sumiço, para a superfície do mar, as danças do escudo solar, os tremores de terra, a deriva dos continentes, o degelo das neves e o trajecto dos icebergs, os rios que fluem para os mares, a germinação das sementes, o vento que esculpe as montanhas, o desenvolvimento dos fetos no ventre materno, as rugas em torno dos olhos, a decomposição dos cadáveres nas sepultaras, a maturação dos vinhos, os cogumelos que crescem depois de chover.

Deus está em todos os processos. Deus pulsa em todas as transformações. Às vezes está presente, outras vezes, menos presente e outras, ainda, ausente de todo. Na verdade, Deus manifesta-se mesmo quando está ausente.

“ – Não se trata de saber se Deus existe ou não existe. Não é assim. A questão é acreditar ou não acreditar.”

“ – Eu acredito que existe. (...) Se Deus existe, o que importa é que eu acredito. Se não existe, também não me custa nada acreditar.”

“Imagina agora que não há Deus, tal como dizes, por baixo. Que não há ninguém a zelar por ninguém. Que todo o mundo é uma grande confusão ou, pior ainda, uma máquina, uma debulhadora estragada que, por ímpeto, continua a girar em torno do seu eixo…”

(...) olhou mais uma vez em seu redor (…). Esforçou-se mentalmente o mais que pôde e arregalou os olhos ao ponto de começar a lacrimejar. Foi então que, por um breve instante, viu tudo de maneira completamente diferente. O espaço estendia-se por todos os lados, vazio e infinito. Tudo o que se encontrava naquele espaço morto, tudo o que estava morto, tudo o que estava vivo, era impotente e solitário. As coisas aconteciam casualmente e quando a casualidade falhava, aparecia uma lei mecânica. A máquina rítmica da natureza. Os pistões e as rodas dentadas da história. Regularidades que apodreciam por dentro e se dissipavam em pó. Frieza e tristeza reinavam por todo o lado. Todas as criaturas ansiavam por abraçar algo, agarrar-se a algo, a alguém, mas daí só resultava sofrimento e desespero.

E, agora compreendia de onde lhe vinha aquela sensação de privação, aquela tristeza subjacente a toda a coisa, a tristeza presente em todas as coisas, todos os fenómenos, desde sempre – era impossível abarcar todas as coisas de uma só vez.

Outrora e outros tempos - Olga Tokarczuk

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