No
Santo António de 1980, tinha eu 16 anos e acabado o décimo primeiro ano. A
Directora de Turma chamara os meus pais para lhes dizer que eu era inteligente
e devia continuar os estudos mas a conversa nem começou porque o velho disse
que não ia, não queria doutores na família e doutoras ainda menos - e a minha mãe não se atrevia a contradizê-lo. A
minha vida era calcorrear as vielas da Sé, descer do Limoeiro à Baixa, e fazer
os recados da avó nas retrosarias da Rua da Conceição, ou subir aos Loios,
descer as Escadas de S. Crispim, apanhar S. Mamede e daí a Rua da Madalena, e
na Praça da Figueira fazer as compras para a despensa. Não desgostava daquela vida
preguiçosa mas sentia que tinha que haver mais – mulheres a cozer e a bordar o
dia todo, as agulhas que se partiam, os dedos que se picavam, a vista que se
finava aos poucos, o avô a tossir e a arrastar os chinelos, o velho a chegar ao
fim do dia com cheiro a suor requentado, a entregar a marmita vazia e, ao fim
do mês, o salário com que se pagava a renda, a água, a luz e o gás, porque a
comida, essa, saía das rendas e dos bordados. Sem saber o que queria da vida
sabia que aquilo não era vida para mim.
Nessa
noite de Santo António fui com um grupo para o Largo da Sé para saltar a
fogueira e comer umas sardinhas e um caldo verde. A avó tinha-me dado duas
notas de cinquenta, daquelas com a Rainha Santa, e o meu pai uma das verdes,
com a cara do Santo que dava nome à noite. Foi nessa noite e no Largo da Sé que
conheci o João Carlos, mais velho que eu dez anos, um borracho, lindo de morrer,
louro, branco e com olhos verdes de gato. Magro, muito magro, eu também o era,
não tinha ainda formas de mulher, era lisa com uma tábua. De costas ou de
frente parecíamos dois rapazinhos. O João Carlos não era do bairro, era fino e
de boas famílias, morava num andar na Rodrigo da Fonseca, com elevador e
aquecimento central. Sozinho, que os pais tinham ido para o Brasil em 74 e por
cá o deixaram a estudar Direito e com mesada milionária – ou assim me contou a
história. Mudei-me para a Rodrigo da Fonseca nessa noite, noite em que passei
da infância ao inferno, sem parar no purgatório.
Hoje é noite de Santo António,
tenho vinte anos e sei que estou a morrer. Tornei-me esquelética, quase
transparente, os meus ossos furam a pele, que está coberta de manchas negras.
Mal respiro, já tive várias pneumonias e ninguém me diz o que tenho. Ou podem
ter dito e eu esqueci-me, como costuma acontecer. Só não me esqueço de duas
coisas – da explosão que senti naquela madrugada de Santo António, quando o
João Carlos pela primeira vez me injectou o cavalo e que a partir daí a minha
vida foi a busca incessante de voltar a sentir a explosão.
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