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segunda-feira, 13 de junho de 2022

RUA DA SAUDADE



Nasci e vivi na Rua da Saudade, num quarto andar do número 23, com vista para o Tejo, prédio famoso porque nele viveram o Ary das canções do festival e o O’Neill, aquele da coisa em forma de assim. O andar era o último, gelado no inverno, tórrido no verão. Vivíamos lá três gerações – avós paternos, pais, dois irmãos rapazes, um mais velho dez anos e o outro seis, que cedo fizeram pela vida, tornaram-se um canalizador o outro electricista, e cedo casaram, com moças do Bairro – ambas da Rua das Merceeiras -, e mudaram-se para Santo António dos Cavaleiros. Ao Domingo vinham almoçar connosco.

No Santo António de 1980, tinha eu 16 anos e acabado o décimo primeiro ano. A Directora de Turma chamara os meus pais para lhes dizer que eu era inteligente e devia continuar os estudos mas a conversa nem começou porque o velho disse que não ia, não queria doutores na família e doutoras ainda menos -  e a minha mãe não se atrevia a contradizê-lo. A minha vida era calcorrear as vielas da Sé, descer do Limoeiro à Baixa, e fazer os recados da avó nas retrosarias da Rua da Conceição, ou subir aos Loios, descer as Escadas de S. Crispim, apanhar S. Mamede e daí a Rua da Madalena, e na Praça da Figueira fazer as compras para a despensa. Não desgostava daquela vida preguiçosa mas sentia que tinha que haver mais – mulheres a cozer e a bordar o dia todo, as agulhas que se partiam, os dedos que se picavam, a vista que se finava aos poucos, o avô a tossir e a arrastar os chinelos, o velho a chegar ao fim do dia com cheiro a suor requentado, a entregar a marmita vazia e, ao fim do mês, o salário com que se pagava a renda, a água, a luz e o gás, porque a comida, essa, saía das rendas e dos bordados. Sem saber o que queria da vida sabia que aquilo não era vida para mim.

Nessa noite de Santo António fui com um grupo para o Largo da Sé para saltar a fogueira e comer umas sardinhas e um caldo verde. A avó tinha-me dado duas notas de cinquenta, daquelas com a Rainha Santa, e o meu pai uma das verdes, com a cara do Santo que dava nome à noite. Foi nessa noite e no Largo da Sé que conheci o João Carlos, mais velho que eu dez anos, um borracho, lindo de morrer, louro, branco e com olhos verdes de gato. Magro, muito magro, eu também o era, não tinha ainda formas de mulher, era lisa com uma tábua. De costas ou de frente parecíamos dois rapazinhos. O João Carlos não era do bairro, era fino e de boas famílias, morava num andar na Rodrigo da Fonseca, com elevador e aquecimento central. Sozinho, que os pais tinham ido para o Brasil em 74 e por cá o deixaram a estudar Direito e com mesada milionária – ou assim me contou a história. Mudei-me para a Rodrigo da Fonseca nessa noite, noite em que passei da infância ao inferno, sem parar no purgatório.

Hoje é noite de Santo António, tenho vinte anos e sei que estou a morrer. Tornei-me esquelética, quase transparente, os meus ossos furam a pele, que está coberta de manchas negras. Mal respiro, já tive várias pneumonias e ninguém me diz o que tenho. Ou podem ter dito e eu esqueci-me, como costuma acontecer. Só não me esqueço de duas coisas – da explosão que senti naquela madrugada de Santo António, quando o João Carlos pela primeira vez me injectou o cavalo e que a partir daí a minha vida foi a busca incessante de voltar a sentir a explosão.


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