Con los hermanos uno no necesita verse. Yo, mientras él anduviera por ahí, no me sentía solo. - Santiago Gamboa em Perder es cuestión de método.
Cheguei,
qual conjurada, à velha casa que havia visto nascer alguns de nós, assistira às
metamorfoses das várias idades que lá vivêramos e, por fim, nos vira partir num
dia longínquo que ocorreu no Outono e que para nós, mesmo que assim não fosse,
sempre teria sido Outono.
Percorri-a,
em silêncio, um silêncio que, potenciado pelo ambiente sepulcral da casa, se
tornou ensurdecedor. Pela minha memória passaram as imagens que julgava
esquecidas – o meu quarto de brinquedos, agora vazio, e no qual tive que entrar
quase de gatas, o vizinho laboratório do Zé, devidamente localizado nas
mansardas - não fosse o nosso “Professor Pardal” provocar alguma explosão e
assim só o telhado é que ia pelos ares -, as escadas que se desenvolviam sob a claraboia e nos conduziram à zona nobre dos quartos. Fechei os olhos; vi o
psiché do quarto dos pais, vi-me a abrir caixas e a desfazer colares cujas
contas rolavam por todo o lado, vi-me fazer uma grande birra no quarto contíguo
e a levar uns sopapos que me deixaram calada (soluçante, infeliz, mas calada), vi-me nesse
mesmo quarto, aborrecida de morte durante os trinta dias que durou a cura da
minha hepatite.
A
sala de jantar “dos dias de festa” estava vazia mas via-a tal qual era,
com a adjacente “alcova” que servia de sala de estar e onde se localizou
durante muitos anos a televisão (que só se via à noite e depois de jantar).
Pelas sacadas abertas de par em par o vento fresco do fim da tarde trouxe
consigo o odor da madressilva que cobria a varanda; apanhei algumas flores e
juntei-as às glicínias que já tinha colhido no quintal da frente. Da varanda
avistei a antiga horta e o “coradouro” que se usava para branquear a roupa, nos
tempos pré-históricos em que não tínhamos máquina da roupa. Apercebi-me de que
o antigo horto já não existia, amputação provocada pela VCI havia já um ror de
anos, e agora quase (quase…) se podia ver a casa “nova”, aquela onde vivia a
Mãe, distante apenas umas centenas de metros mas que para mim eram umas
centenas de décadas.
Baixei
ao piso da cozinha e da sala de jantar do dia a dia. Já trazia o jantar pronto,
foi só pôr a mesa e esperar a chegada dos outros. Liguei o velho rádio Nordmend que,
depois de uma tosse roufenha, de repente, começou a transmitir … o “Em
Órbita”!!! Não quis crer no que estava a ouvir, mas sim, era o Em Órbita, que
passava Leonard Cohen e Simon&Garfunkel, Joan Baez, Bob Dylon. O mesmo que
anunciara. “in ilo temporte”, que Strangers in the Night tinha sido o
pior disco do ano, para enorme desgosto da Naná…
Desisti de entender e fui
trauteando as letras que agora já eram minhas velhas conhecidas, não
representando Cohen nenhum papão que me fizesse comer a sopa como nos tempos do
velhinho “Em Órbita”.
Um
telefone preto de baquelite jazia no chão. O número 40687 nele inscrito fez-me
recordar os tempos em que para ligar para aos Padrinhos tínhamos que passar
pela telefonista que, num voz nasalada perguntava “982?...” devendo nós
acrescentar o dígitos em falta, que inicialmente eram três e depois passaram a
quatro. E tínhamos sorte porque de casa dos Padrinhos tempos houve em que só se
levantava o auscultador de baquelite e a telefonista fazia o trabalho todo (suponho que, nas horas vagas, também
ouvisse algumas conversas…).
“Os
outros” foram chegando. Primeiro a Naná, acompanhado do Gastão, não o do
Patinhas, mas sim o seu gato preto, que se soltou desvairado correndo pela
casa. “O que tu queres sei eu”, pensei com os meus botões, ao mesmo
tempo que ficava aliviada pois a perspectiva de maus encontros não era
descabida.
Veio
depois o Zé, que trouxe um bom humor alucinante (nesse dia não clamou ser
surdo-mudo) e começou a acompanhar a rádio, com um pau de vassoura a fazer de
microfone, cantando “Capri, c’est fini”, do cantor que ele chamava o “Erva da
Vila”; nessa noite não passaram nada do Gato Esteves, mas mesmo assim,
tivemos direito à Desfolhada, à Festa da Vida, ao
Cavalo à Solta, ao Corre Nina, ao El-Rei D. Sebastião, simultaneamente cantadas
e orquestradas pelo Zé.
Mais tarde chegou o Horácio Jr.. Trazia um Barca Velha de 95 e um Porto Vintage (ou LBV) de 1977, duas garrafas que, no seu conjunto, deveriam somar 50% de teor alcoólico. “Deve ser para voltarmos para casa da Mãe a rastejar, isto se não formos presos antes de lá chegarmos, acusados de «caminhada perigosa», não sei se ainda te lembras, mas o estado de alcoolémia, só por si, é crime de perigo, não precisamos de provocar nenhum crime concreto ou dano!”. Encolheu os ombros, olhou-me e sorriu, convocando todo o seu charme de outrora – “Sabes mana, este dia não vai repetir-se…”
Desembrulhei o farnel – a sopa
mágica, receita da minha amiga Natália (à cautela tinha levado molho inglês, sabia que o mano
mais velho achava sempre tudo insosso e doce); umas pataniscas vegetarianas, para
ombrear com as da Naná, as melhores do mundo (e arredores…) e um arroz de
ervilhas feito pela nossa Mãe, que fizera questão de o cozinhar, porque pataniscas ainda vá, até porque pensava serem de bacalhau, agora um jantar de irmãos com arroz
escuro e cascudo é que nem pensar...
Sentamo-nos
à volta da mesa e fomos comendo devagar, falando todos ao mesmo tempo, muitas
vezes perguntando uns aos outros “Lembras-te de quando…?” E todos nos
lembrávamos de quando, como, onde, em que dia, a hora e o minuto, a parte
estranha é que as nossas memórias raramente coincidiam no dia ou na hora ou no
minuto... É verdade também que todos éramos um bocadinhos “estranhos”
para essa coisa das datas – a bem dizer, éramos tipo “nerd” ou “weird” (não me
ocorre definição em português), e, enquanto a discussão prosseguia, liderada
com quatro campeonatos de avanço pelo Horácio Jr., alheei--me um bocado e pus-me
a imaginar uma equipa de profilers
do FBI a fazer-nos o perfil psicológico (o
que só poderia acontecer por pura recreação porque nenhum de nós poderia ser
personagem nem de CSI nem de Profilers).
O
meu devaneio foi subitamente interrompido por um latido impaciente. Ficámos
imóveis como estátuas, eu fria e a transpirar, com o coração a 250 por minuto.
Da janela, uma sombra negra saltou para a sala e caiu aos pés do Horácio Jr..
Incrédulos, balbuciamos em uníssono “Flock?!...” Sim, era o velho Flock, uma
massa de caracóis pretos com peito branco, um misto de caniche, cão de água,
cruzado certamente com uma refeirice qualquer. O Flock que dormia por baixo da
cama do meu irmão mais velho e que rosnava ameaçador (ele, que fugia de ratos…)
quando alguém invadia aqueles domínios sagrados. O Flock que arrancava as
couves da horta e puxava os lençóis do coradouro para os depositar à porta de
casa como forma de protesto por ficar fora de casa em dia de visitas para
jantar. O Flock que, mudados de casa, fugindo aos novos donos, persistiu uns
dois anos em ir visitar-nos na nova morada, apesar de nunca lá ter estado.
Sim, era ele mesmo, e todos nós chorámos, por tudo aquilo que o pobre cão
representava e convocava do nosso passado. Recordamos aquele o dia em que a
cafeteira do café explodiu, porque a Naná se esquecera de lhe pôr água, e o
Flock saltou pela janela da cozinha e fugiu para o fundo do quintal onde ficou
durante muito tempo ou aqueloutro em que os manos decidiram dar a provar
ao pobre Flock, criatura crédula e amante dos donos, uma colher de café com
aguardente… Deve haver histórias destas em todas as famílias mas as nossas são,
como podem imaginar, únicas. Rimos até às lágrimas e já não sabíamos se era das
recordações se da mistura do Barca Velha 95 com o LBV de 1977…
Até
que na rádio passou Forever young, de Bob Dylon, mas cantado por Joan Baez,
naquela voz pura e arrebatadora. Então o primogénito levantou-se e disse que
era tempo de partir. Tentamos impedi-lo, já, tão cedo? Apenas sorriu e
sussurrou “digam à mamã que gosto muito dela”. Partiu. O Flock seguiu-o, a
cauda baixa, um uivo aflitivo soltando-se-lhe do fundo do seu ser.
Nós
os três ficámos imóveis, estátuas de sal, sem perceber o que estava a
acontecer. Pensávamos que víamos um filme e que, no fim, as luzes se acenderiam
e tudo voltaria à normalidade.
Mas
não voltou.
Nem
então, quando de quatro passamos a três, nem depois, quando ficamos duas, nem
agora, que sou só eu.
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Os
meus irmãos eram todos mais velhos, doutra geração, o que nos fez divergir em muita coisa mas tal nunca pôs em causa o que sentíamos uns pelos outros.
Entretanto,
a casa velha está, há muitos muitos anos, em ruínas, à espera de uma demolição caridosa, mas foi nela
que fomos os quatro muito, muito felizes, acredito que alguns deles tenham sido
também infelizes, eu só tenho boas recordações. Desde logo, deles. E do velho Flock, claro...
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