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sábado, 5 de fevereiro de 2022

SILÊNCIOS

Com a aproximação do dia da minha festa de noivado, os silêncios tomaram conta da minha vida – da minha, da do meu futuro noivo e da daquele que com ele competia, silêncios feitos de sombras e de escuridão.

A minha vida dupla recebeu a nova identidade duma pessoa que, saída de dentro de mim, não me deixava nem um segundo, perseguindo-me, colada nos meus pés, na minha sombra, gritando-me remoques e críticas que eu sabia serem merecidas mas que nem por isso surtiam efeito.

Encontrávamo-nos todos os dias durante pelo menos duas horas, eu e o meu amante. Fazíamos o que fazem os amantes, com paixão que progressivamente se mesclava com o desespero que me habitava. Ele não sei, eu nem nesses momentos deixava de pensar na estranha em que me tornara, capaz de amar um e o outro, sem de nenhum querer abdicar.

À medida que o dia se aproximava, abraçávamo-nos com mais força, suávamos mais abundantemente. Passei a viver em função dessas duas horas diárias, antes era a espera era a antecipação, durante era o transe e o abandono, depois era o penoso recomeço duma contagem decrescente de horas e minutos, de um jejum de quaresma que não redime porque vive do pecado, mas ainda assim jejum sério, tão sério que no dia do noivado no vestido cabiam duas, eu e a minha dupla, o que, sendo adequado, não chegou para encher o vestido, que ficou abandonado e só no silêncio da sombra do quarto. Nós as duas partimos, outra vez uma, mas nem por isso feliz.

(A partir de O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk)

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