Se, historicamente, o século XX apenas começou com o início da Grande Guerra (1 de Agosto de 1914), então o meu pai nasceu ainda no século XIX, em Vilarinho da Castanheira, concelho de Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança. Os tempos seriam maus mas não tão maus como hoje os pintamos, cheios de certezas de que sem INTERNET nem auto-estradas o interior rural viveu na Idade Média até finais do século XX. O livro “Não haverá musgo”, de John Gibbons, ambientado no concelho de Carrazeda no fim dos anos 30, dá-nos uma ideia de como era a vida no alvorecer da 2.ª Guerra, e não deveria ser muito diferente da vida antes da Grande Guerra. Voltando ao meu pai, nasceu filho de Teresa de Jesus Carvalho, com quem partilhava o segundo e terceiro nomes, e de pai incógnito, mas que todos sabiam ser o Manuel da Cruz, lavrador e proprietário de terras, para quem a minha avó Teresa trabalharia como jornaleira. Já tinha uma irmã, a Tia Aidinha, nascida três anos antes. A vida de trabalho da mãe, a pobreza, fizeram com que fosse criado por si mesmo, sem mimos. Quando tinha seis anos, em 1920, a mãe teve mais uma filha, doutro homem, este rico e solteiro, que ao invés de lhe propor casamento, ou pelo menos mancebia, lhe ficou com a filha contra a promessa (e expectativa) de uma vida melhor e da abastança que a posse de terras então garantia. É verdade que a menina veio a ter uma vida mais desafogada, mas longe da felicidade imaginada pela mãe, à qual nunca perdoou o abandono. Não sei se foi por causa desta terceira maternidade, mas o certo é que a avó Teresa foi então para o Porto à procura duma vida melhor. Penso que terá levado a filha mais velha, mas o menino ficou na terra, entregue aos cuidados do padrinho. Passou os dias a cuidar do gado, com falta de tudo menos de fome e frio. Só aos dez anos a mãe o chamou para ir para o Porto, onde chegou completamente analfabeto de letras, envergonhado pelo seu provincianismo, pela sua falta de modos e de conhecimentos, tímido e tristonho. Contou-me uma vez o meu pai o quanto era gozado por responder com um “Não, mas sim quero...” a uma qualquer pergunta formulada na negativa mas cuja resposta seria positiva, como era hábito na terra donde vinha. Ou seja, nada de mais, o “si” francês.
Foi
para um colégio interno – não tenho a certeza se terá sido o Colégio dos
Carvalhos, nome que lhe assentaria como uma luva – onde entrou aos dez anos
sem conhecer letra nenhum. Em Julho de 1932, com dezoito anos, concluiu na
Escola Comercial Mouzinho da Silveira – que já não existe -, o Curso Complementar
de Comércio, nos termos do Decreto n.º 18.420, emanado do Ministério da
Instrução Pública em 4 de Junho de 1930, tendo por objecto a reorganização do
ensino técnico, industrial e comercial.
Fazer
em oito anos o que normalmente se faz em onze, revelava já uma personalidade
fora do comum, que o tempo só veio a comprovar, considerando todos os pouco
auspiciosos antecedentes familiares, sociais e económicos, a que acresciam o
gozo e perseguição dos colegas (hoje diríamos “bullying”), de que
desabafou com a minha mãe. Concluída a instrução em 1932, logo começou a
trabalhar. Pouco sei desses empregos, sei apenas que quando conheceu a minha
mãe, em 1940 (viram-se uma vez em 1939, num baile, mas só dezoito meses depois
se reencontraram na Praia de Espinho e aí começaram a relacionar-se), já tinha
uma “posição” na Misericórdia do Porto, onde ingressara em 1934 e onde ficou
por trinta e cinco anos, até se reformar da “Instituição”, em 1969, com o cargo
máximo, abaixo da Mesa. A par do emprego, dava explicações, mais tarde fazia
várias escritas (uma delas nos “Santos”, que era uma loja que vendia presépios,
figuras de cascatas, adornos vários para Igrejas e sacristias, donde era
originário o velho presépio, em que o Menino Jesus tem alguns membros partidos,
ao burro falta uma orelha e à vaca um ou
dois chifres, e que hoje me está confiado). Deslocava-se de eléctrico, cujo
ramerrame ronceiro lhe permitia rematar as horas de sono em falta, fruto de noites
mal dormidas, pois o tempo não esticava e os múltiplos afazeres ocupavam muitas
das horas que o dia tinha. Em 1954, com quarenta anos, casado e pai de quatro
filhos, concluiu o Instituto de Contabilidade, tornando-se contabilista e, mais
tarde, técnico de contas. Alguns dos melhores amigos da família eram antigos
colegas de curso – o Sr. Armando Sousa (casado com a D. Armanda), o Sr. Armando
Ferreira e a que viria a ser sua mulher, a D. Zulmira. Fui a muitos casamentos
dos filhos desses amigos. Aliás, a vida social dos meus pais era intensa –
casamentos, baptizados (muitos de afilhados, Horácios e Esmeraldas de apelidos
diversos, outros com nomes mais
conformes à modernidade dos tempos), congressos de Hospitais e Misericórdias, festas de anos, piqueniques,
“assaltos” de Carnaval, os bailes do Clube Recreativo Avintense onde se
conheceram em 1939, os de Carnaval ao Domingo e à terça-feira, o de Páscoa no
Sábado de Aleluia. Tenho fotografias, imensas, que atestam essa intensidade,
só quebrada a partir de 1975, com o saneamento de que foi alvo em 1975 nos
Invictos-Modelo, supermercados de que era Administrador.
Hoje
seria doutor. À época era só Sr. Horácio de Carvalho, e nunca precisou de
títulos para ser quem era, para ter o percurso que teve – que ultrapassou em
muito os dos filhos legítimos do pouco incógnito pai – para ter carisma e para
escrever toda a sorte de documentos sem necessidade de advogados para as ditas
“cartas jurídicas”, excepto quando o assunto descambava e seguia para a via
contenciosa.
A
Misericórdia do Porto era então um potentado. Tinha no Porto três hospitais
(Santo António, Conde de Ferreira e Rodrigues Semide, este último desaparecido
porque a tuberculose deixou de ser o que era, o edifício transformado numa qualquer
universidade privada), todos nacionalizados, sem indemnização, depois de 1975, colégios
vários – de que apenas me lembro do Nossa Senhora da Esperança, dos
Surdos-Mudos e dos Órfãos ou Nova Cintra - quase todos dedicados aos mais desafortunados
da sorte, uma Igreja do mesmo nome com um riquíssimo acervo museológico, na Rua
das Flores, ao lado da sede. Quintas e propriedades Douro acima, entre Douro e
Minho e no Minho propriamente dito eram mais que muitas. Tudo isto obrigava a
uma gestão intensa, multi-facetada e com muitas deslocações à mistura.
Lembro-me de viagens a Barca de Alva, onde ficávamos na pensão da Sra.
Crescência (a última vez que lá passei, há uns 20 anos, parecia o hotel do
filme Psico), saíamos do Porto depois do almoço de Sábado e regressávamos
no Domingo à tarde, depois de palmilhados os quinhentos ou seiscentos
quilómetros da sinuosa estrada 222, cujas curvas e contra-curvas obrigavam à
toma dum vomidrine que me punha a dormir
a viagem toda. Excepto daquela vez em que fui a cantar a música de “Puppett on a string”, corria o ano de 1967, o Eurofestival tinha sido ganho pela Sandie Shaw. Coitados, coitados, dos meus pais, apesar de, então, eu cantar
afinadamente, nada do desastre actual, muito admiro e agradeço não me terem largado
na beira da estrada...
Em
1954, tinha a Manelinha vinte meses e estando a minha mãe grávida de sete meses
do Zé, ausentou-se o meu pai duas ou três semanas para um congresso em França,
não sei se o tema eram as Misericórdias ou a gestão hospitalar, sei apenas que
a viagem para Paris foi feita de comboio, deve ter durado dois dias para cada
lado, e que não havia qualquer facilidade de comunicações pelo que as conversas
com a minha mãe devem ter sido muito poucas, com os dois filhos ainda menos, o
que levou a Manelinha a chorar de saudades, agarrada a um cachecol que
“cheirava a papá”. Confiava-se na sorte e que tudo ia correr bem, o regresso
dava-se no dia previsto, apesar de não haver telemóveis nem whattsapps para
confirmar os dados do comboio . Há lá em casa velhas fotografias a preto e
branco que penso retratam esse congresso, cheio de homens trajados a rigor, muito
sérios, pouquíssimas mulheres, espartilhadas no formalismo dos anos cinquenta,
rigor e formalidades inimagináveis nos tempos que correm.
Promovido
ao cargo de Secretário-Chefe, mudou-se a família de Avintes para o Porto em
1951 [ano triste por ter falecido a Fatinha, um anjinho de três anos que a vida
levou nos levou], onde, por inerência de cargo, tinha o meu pai direito a casa
- melhor dito, um casarão na Rua Costa Cabral, no gaveto formado com a Rua
de Contumil, onde hoje só persiste a ruína da fachada, em frente ao Conde de
Ferreira – e telefone. A minha mãe, avisadamente, mandou colocar uma
segunda ficha para o telefone no quarto do casal, situado no andar de cima,
para onde todas as noites transportava o telefone de baquelite preto, que devia
pesar não poucos quilos e que partiria qualquer pé em que caísse, relíquia
vintage hoje guardada em minha casa. Não foram poucas as vezes que, noite
dentro, o meu pai atendia telefonemas do Provedor ou Mesários, mantendo-se
acordado apenas graças às cotoveladas da minha mãe.
No
mesmo ano em que concluiu o Instituto, com 40 anos, inscreveu-se o meu pai na
Universidade de Coimbra. Penso que terá sido em Histórico-Filosóficas, curso
que anos mais tarde gostaria que eu tivesse seguido, mas a vida intensa que
tinha impediu-o de concretizar esse sonho.
Em Abril de 1975,
foi saneado do cargo de Administrador dos Invictos-Modelo, sociedade do Banco Pinto de Magalhães, que havia sido nacionalizado no 11 de Março de 1975.
Lembro-me de, num dia desse mês de Abril, ao sair cedo de casa para ir para o liceu, haver um papel
colado na porta do prédio onde se lia, entre outras pérolas, “O dono desta casa
é um ladrão”. Li e disse “Olha que disparate, estão a chamar ladrão ao senhorio!”,
arranquei-o sem ter consciência de que o “ladrão” era o meu pai. Muito anos
mais tarde, lendo o livro da Zita Seabra, “Foi assim”, percebi como se organizaram
estes saneamentos.
A vida, que nunca fora de larguezas, passou a correr menos bem. Para garantir o futuro, os meus pais tinham feito investimentos em andares de rendimento. Com as rendas congeladas, a inflacção a disparar e por força dela também os empréstimos que haviam sido contraídos, foram anos difíceis. Dois anos depois, em 1977, com 63 anos, o meu pai recebeu uma indemnização pelo saneamento dos Invictos (os Tribunais eram um bocadinho mais céleres naquela época) e teve três propostas de trabalho em regime liberal, aceitou todas, e três anos depois a nossa vida estava endireitada. Nos anos 80 integrou a Mesa da Misericórdia. Trabalhou até aos 81 anos, o último trabalho que fez foi a dissolução e liquidação de uma das sociedades onde começou a trabalhar em 1977 – lá está, sem precisar de advogados – um ano antes de morrer.
Nasceu
no dia 6 de Fevereiro de 1914.
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