Páginas

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O MEU PAI

Se, historicamente, o século XX apenas começou com o início da Grande Guerra (1 de Agosto de 1914), então o meu pai nasceu ainda no século XIX, em Vilarinho da Castanheira, concelho de Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança. Os tempos seriam maus mas não tão maus como hoje os pintamos, cheios de certezas de que sem INTERNET nem auto-estradas o interior rural viveu na Idade Média até finais do século XX. O livro “Não haverá musgo”, de John Gibbons, ambientado no concelho de Carrazeda no fim dos anos 30, dá-nos uma ideia de como era a vida no alvorecer da 2.ª Guerra, e não deveria ser muito diferente da vida antes da Grande Guerra. Voltando ao meu pai, nasceu filho de Teresa de Jesus Carvalho, com quem partilhava o segundo e terceiro nomes, e de pai incógnito, mas que todos sabiam ser o Manuel da Cruz, lavrador e proprietário de terras, para quem a minha avó Teresa trabalharia como jornaleira. Já tinha uma irmã, a Tia Aidinha, nascida três anos antes. A vida de trabalho da mãe, a pobreza, fizeram com que fosse criado por si mesmo, sem mimos. Quando tinha seis anos, em 1920, a mãe teve mais uma filha, doutro homem, este rico e solteiro, que ao invés de lhe propor casamento, ou pelo menos mancebia, lhe ficou com a filha contra a promessa (e expectativa) de uma vida melhor e da abastança que a posse de terras então garantia. É verdade que a menina veio a ter uma vida mais desafogada, mas longe da felicidade imaginada pela mãe, à qual nunca perdoou o abandono. Não sei se foi por causa desta terceira maternidade, mas o certo é que a avó Teresa foi então para o Porto à procura duma vida melhor. Penso que terá levado a filha mais velha, mas o menino ficou na terra, entregue aos cuidados do padrinho. Passou os dias a cuidar do gado, com falta de tudo menos de fome e frio. Só aos dez anos a mãe o chamou para ir para o Porto, onde chegou completamente analfabeto de letras, envergonhado pelo seu provincianismo, pela sua falta de modos e de conhecimentos, tímido e tristonho. Contou-me uma vez o meu pai o quanto era gozado por responder com um “Não, mas sim quero...” a uma qualquer pergunta formulada na negativa mas cuja resposta seria positiva, como era hábito na terra donde vinha. Ou seja, nada de mais, o “si” francês.

Foi para um colégio interno – não tenho a certeza se terá sido o Colégio dos Carvalhos, nome que lhe assentaria como uma luva – onde entrou aos dez anos sem conhecer letra nenhum. Em Julho de 1932, com dezoito anos, concluiu na Escola Comercial Mouzinho da Silveira – que já não existe -, o Curso Complementar de Comércio, nos termos do Decreto n.º 18.420, emanado do Ministério da Instrução Pública em 4 de Junho de 1930, tendo por objecto a reorganização do ensino técnico, industrial e comercial.

Fazer em oito anos o que normalmente se faz em onze, revelava já uma personalidade fora do comum, que o tempo só veio a comprovar, considerando todos os pouco auspiciosos antecedentes familiares, sociais e económicos, a que acresciam o gozo e perseguição dos colegas (hoje diríamos “bullying”), de que desabafou com a minha mãe. Concluída a instrução em 1932, logo começou a trabalhar. Pouco sei desses empregos, sei apenas que quando conheceu a minha mãe, em 1940 (viram-se uma vez em 1939, num baile, mas só dezoito meses depois se reencontraram na Praia de Espinho e aí começaram a relacionar-se), já tinha uma “posição” na Misericórdia do Porto, onde ingressara em 1934 e onde ficou por trinta e cinco anos, até se reformar da “Instituição”, em 1969, com o cargo máximo, abaixo da Mesa. A par do emprego, dava explicações, mais tarde fazia várias escritas (uma delas nos “Santos”, que era uma loja que vendia presépios, figuras de cascatas, adornos vários para Igrejas e sacristias, donde era originário o velho presépio, em que o Menino Jesus tem alguns membros partidos, ao burro falta uma orelha e à vaca  um ou dois chifres, e que hoje me está confiado). Deslocava-se de eléctrico, cujo ramerrame ronceiro lhe permitia rematar as horas de sono em falta, fruto de noites mal dormidas, pois o tempo não esticava e os múltiplos afazeres ocupavam muitas das horas que o dia tinha. Em 1954, com quarenta anos, casado e pai de quatro filhos, concluiu o Instituto de Contabilidade, tornando-se contabilista e, mais tarde, técnico de contas. Alguns dos melhores amigos da família eram antigos colegas de curso – o Sr. Armando Sousa (casado com a D. Armanda), o Sr. Armando Ferreira e a que viria a ser sua mulher, a D. Zulmira. Fui a muitos casamentos dos filhos desses amigos. Aliás, a vida social dos meus pais era intensa – casamentos, baptizados (muitos de afilhados, Horácios e Esmeraldas de apelidos diversos, outros com  nomes mais conformes à modernidade dos tempos), congressos de Hospitais e  Misericórdias, festas de anos, piqueniques, “assaltos” de Carnaval, os bailes do Clube Recreativo Avintense onde se conheceram em 1939, os de Carnaval ao Domingo e à terça-feira, o de Páscoa no Sábado de Aleluia. Tenho fotografias, imensas, que atestam essa intensidade, só quebrada a partir de 1975, com o saneamento de que foi alvo em 1975 nos Invictos-Modelo, supermercados de que era Administrador.

Hoje seria doutor. À época era só Sr. Horácio de Carvalho, e nunca precisou de títulos para ser quem era, para ter o percurso que teve – que ultrapassou em muito os dos filhos legítimos do pouco incógnito pai – para ter carisma e para escrever toda a sorte de documentos sem necessidade de advogados para as ditas “cartas jurídicas”, excepto quando o assunto descambava e seguia para a via contenciosa.

A Misericórdia do Porto era então um potentado. Tinha no Porto três hospitais (Santo António, Conde de Ferreira e Rodrigues Semide, este último desaparecido porque a tuberculose deixou de ser o que era, o edifício transformado numa qualquer universidade privada), todos nacionalizados, sem indemnização, depois de 1975, colégios vários – de que apenas me lembro do Nossa Senhora da Esperança, dos Surdos-Mudos e dos Órfãos ou Nova Cintra - quase todos dedicados aos mais desafortunados da sorte, uma Igreja do mesmo nome com um riquíssimo acervo museológico, na Rua das Flores, ao lado da sede. Quintas e propriedades Douro acima, entre Douro e Minho e no Minho propriamente dito eram mais que muitas. Tudo isto obrigava a uma gestão intensa, multi-facetada e com muitas deslocações à mistura. Lembro-me de viagens a Barca de Alva, onde ficávamos na pensão da Sra. Crescência (a última vez que lá passei, há uns 20 anos, parecia o hotel do filme Psico), saíamos do Porto depois do almoço de Sábado e regressávamos no Domingo à tarde, depois de palmilhados os quinhentos ou seiscentos quilómetros da sinuosa estrada 222, cujas curvas e contra-curvas obrigavam à toma dum vomidrine que me punha a dormir  a viagem toda. Excepto daquela vez em que fui a cantar a música de “Puppett on a string”, corria o ano de 1967, o Eurofestival tinha sido ganho pela Sandie Shaw. Coitados, coitados, dos meus pais, apesar de, então, eu cantar afinadamente, nada do desastre actual, muito admiro e agradeço não me terem largado na beira da estrada...

Em 1954, tinha a Manelinha vinte meses e estando a minha mãe grávida de sete meses do Zé, ausentou-se o meu pai duas ou três semanas para um congresso em França, não sei se o tema eram as Misericórdias ou a gestão hospitalar, sei apenas que a viagem para Paris foi feita de comboio, deve ter durado dois dias para cada lado, e que não havia qualquer facilidade de comunicações pelo que as conversas com a minha mãe devem ter sido muito poucas, com os dois filhos ainda menos, o que levou a Manelinha a chorar de saudades, agarrada a um cachecol que “cheirava a papá”. Confiava-se na sorte e que tudo ia correr bem, o regresso dava-se no dia previsto, apesar de não haver telemóveis nem whattsapps para confirmar os dados do comboio . Há lá em casa velhas fotografias a preto e branco que penso retratam esse congresso, cheio de homens trajados a rigor, muito sérios, pouquíssimas mulheres, espartilhadas no formalismo dos anos cinquenta, rigor e formalidades inimagináveis nos tempos que correm.

Promovido ao cargo de Secretário-Chefe, mudou-se a família de Avintes para o Porto em 1951 [ano triste por ter falecido a Fatinha, um anjinho de três anos que a vida levou nos levou], onde, por inerência de cargo, tinha o meu pai direito a casa - melhor dito, um casarão na Rua Costa Cabral, no gaveto formado com a Rua de Contumil, onde hoje só persiste a ruína da fachada, em frente ao Conde de Ferreira – e telefone. A minha mãe, avisadamente, mandou colocar uma segunda ficha para o telefone no quarto do casal, situado no andar de cima, para onde todas as noites transportava o telefone de baquelite preto, que devia pesar não poucos quilos e que partiria qualquer pé em que caísse, relíquia vintage hoje guardada em minha casa. Não foram poucas as vezes que, noite dentro, o meu pai atendia telefonemas do Provedor ou Mesários, mantendo-se acordado apenas graças às cotoveladas da minha mãe.

No mesmo ano em que concluiu o Instituto, com 40 anos, inscreveu-se o meu pai na Universidade de Coimbra. Penso que terá sido em Histórico-Filosóficas, curso que anos mais tarde gostaria que eu tivesse seguido, mas a vida intensa que tinha impediu-o de concretizar esse sonho.

Em Abril de 1975, foi saneado do cargo de Administrador dos Invictos-Modelo, sociedade do Banco Pinto de Magalhães, que havia sido nacionalizado no 11 de Março de 1975. Lembro-me de, num dia desse mês de Abril, ao sair cedo de casa para ir para o liceu, haver um papel colado na porta do prédio onde se lia, entre outras pérolas, “O dono desta casa é um ladrão”. Li e disse “Olha que disparate, estão a chamar ladrão ao senhorio!”, arranquei-o sem ter consciência de que o “ladrão” era o meu pai. Muito anos mais tarde, lendo o livro da Zita Seabra, “Foi assim”, percebi como se organizaram estes saneamentos.

A vida, que nunca fora de larguezas, passou a correr menos bem. Para garantir o futuro, os meus pais tinham feito investimentos em andares de rendimento. Com as rendas congeladas, a inflacção a disparar e por força dela também os empréstimos que haviam sido contraídos, foram anos difíceis. Dois anos depois, em 1977, com 63 anos, o meu pai recebeu uma indemnização pelo saneamento dos Invictos (os Tribunais eram um bocadinho mais céleres naquela época) e teve três propostas de trabalho em regime liberal, aceitou todas, e três anos depois a nossa vida estava endireitada. Nos anos 80 integrou a Mesa da Misericórdia. Trabalhou até aos 81 anos, o último trabalho que fez foi a dissolução e liquidação de uma das sociedades onde começou a trabalhar em 1977 – lá está, sem precisar de advogados – um ano antes de morrer.

Nasceu no dia 6 de Fevereiro de 1914.


1935, com 21 anos (fato claro)

Diploma do Instituto - nota: 13,05

BI aos 45 anos

Nem no Rally dos Invictos deixou o fato de 3 peças!

1984

1991, férias no Minho e Galiza





Sem comentários:

Enviar um comentário