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domingo, 27 de fevereiro de 2022

NA LOJA DO CIDADÃO

 - E p’rá acabar em cheio, piso uma casca de banana, escorrego, caio e parto um braço. Quando faltam duas semanas p’ra tirar o gesso, vou à farmácia num dia de chuva, faço aqua planning no chão de mármore, deslizo em voo picado e aterro no balcão de atendimento, bato em cheio co’outro braço, parto o pulso, mais um gesso.

Há trinta minutos que não avançava de página, aliás nem sequer na página, na qual se descrevia um Wilt deitado com uma jarra invertida sobre o baixo ventre. A voz, abafada, não estridente, continuou a desfiar o rosário das desgraças.

 - Dois dias depois, vou a subir umas escadas, desequilibro-meo médico quando me tratou até me disse que deveria de ser derivado a ter os dois braços tolhidos porque os braços, a bem dizer, são assim uma espécie de asas, ajudam ao equilíbrio, até porque não se vê pássaros a voar sem asas [foi perante este argumento de fino quilate que me rendi à inevitabilidade de ter que adiar a leitura, aliás já não queria saber do livro para nada, esta realidade era bem mais capitosa] – torço-me e, p’ra não cair, estico o braço (o do pulso partido) todo pr’á frente, tanto qu’o desencaixo do ombro, co’a dor desmaio e acabo por me estatelar nas escadas. Resultado: uma luxação do ombro, nariz e dentes da frente partidos. Tenho qu’ir à bruxa, é o que é. E a conta do dentista?! Um susto, ia desmaiando outra vez…

Pelo canto do olho observo a desgraçada vítima daquela sucessão de azares e vejo uma figura de idade e sexo indefinidos, sem formas, ou melhor, com forma de saco de batatas, dois braços engessados, um até ao cotovelo e outro na zona do pulso, este encimado por um suporte de couro que o ligava ao ombro, uma tala do nariz e uma chaga no sítio da boca. Dupla chaga, aliás: para a própria e para os nossos ouvidos.

Se por um lado pensava que histórias destas não se inventam não deixei de a imaginar como uma personagem do meu livro – o livro que ela não me deixava ler -, que, ganhando vida própria, galgara pela borda das páginas…

Afastei o pensamento, galgar não era boa ideia, ainda havia duas pernas e uma cabeça sãs para estragar e partir, homem invisível era outro livro que já lera há muito, e eu apenas queria renovar a carta de condução.

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