No início era o silêncio, espesso, e a
escuridão, menos espessa porque pontilhada por tufos de fumarolas que cortavam
o negro azeviche da noite de lua nova. O cheiro. O cheiro, esse, invadia o
local. Era um cheiro sulfúrico e metálico que tornava supérfluos todos os
sentidos que não o olfacto. Por força da habituação, o escuro foi sendo
cortado. O silêncio, esse, mantinha-se mudo. Onde antes havia nada nasceu um
vulto, enorme, medonho soerguido numa diagonal instável. Da Torre de Pisa
improvisada pendiam mobiles, molas e cabos retorcidos, fumegantes. Havia buracos
negros como olhos vazados em vãos que antes tinham sido janelas. E havia corpos
e pedaços de corpos colados nesses vãos que convocavam quadros de Góia.
O silêncio foi
profanado por uma figura errante que murmurava inconsequências. Dir-se-ia
embriagada.
Anda! Vai! Mexe-te! Corre! Ajuda-os.
Não
fizeste já asneira que chegue?!
Isto não está a
acontecer, não está a acontecer, não está…
Não estou aqui, não
estou aqui, não estou…
O aqui não existe, o
aqui não existe, não existe…
É um sonho mau, um
sonho mau, muito mau, mau…
É só um sonho…
Sonho?! Um sonho?!
Procura
uma roca e pode ser que tenhas a sorte de picar os dez dedos das mãos e cair
num sono de dez mil anos que, vezes outros tantos, nunca apagarão os teus
actos, actos sem perdão nem redenção.
O que vou contar, que
justificação, qual a história?!
Há 15 minutos. 15
minutos. Um quarto de hora, novecentos segundos, era o céu.
5 minutos. 5 minutos, 5
minutos. O tempo que passou desde que deixou de poder voltar atrás.
O inferno.
Um minuto, um minuto, um minuto, sessenta
pequenos segundos e a história da minha vida mudou para sempre.
A história da tua vida?! Da tua vida???
E
as vidas dos outros, dos mortos que as perderam, dos queimados em carne viva,
dos partidos em mil estilhaços? Ouve a aflição do silêncio, dos que não se
podem queixar! Cantaste? Pois dança agora. Ajuda-os. Queima os teus dedos e as
tuas mãos, tira-os do braseiro em que os lançaste. Morre, se preciso for e se é
isso que queres. Mas morres sem redenção nem perdão.
Um estrondo. Uma labareda. Uma luz branca. Uma queda. O fim do pesadelo. Não mais sonhos nem despertares, não mais céu e sobretudo não mais inferno. Talvez tivesse afinal picado todos os vinte dedos, os das mãos e os dos pés, quando tinha deixado o carro ir abaixo, completamente afogado e sem hipótese de recuperação, na linha da automotora, um minuto antes do horário anunciado para a passagem desta, e dez minutos apenas depois de, à hora em que deveria ter embarcado na automotora que tinha como destino o ramal da casa familiar, naquele mesmo carro, ter cometido adultério pela última vez, como últimas tinham sido todas as últimas anteriores vezes desde a primeira. Ironia das ironias, esta tinha sido mesmo a última.
Não houve sobreviventes daquele choque frontal da automotora com um SUV abandonado na passagem de nível. A identidade das vítimas demorou muito a ser estabelecida; quase todas estavam carbonizadas, em consequência do incêndio que se seguiu à explosão provocada pelo curto circuito do sistema de iluminação que inflamou os vapores do gasóleo que se libertavam das fissuras dos tanques do combustível. Os médicos legistas nunca conseguiram descobrir a razão pela qual um único corpo não tinha um só osso partido – precisamente o que estava do lado de fora da automotora, não tendo igualmente sido possível determinar como lá tinha ido parar. O proprietário registado do SUV livrou-se duma acusação de homicídio doloso qualificado ao demonstrar que à hora do acidente exercia funções de vereador municipal. O processo crime foi arquivado, tendo ficado a aguardar novos factos e provas que pudessem lançar luz sobre o sucedido. Meses depois, o cônjuge do vereador apareceu enforcado na garagem de casa sem carta de despedida. O veredicto foi suicídio mas ninguém conseguiu descobrir porquê.
Baseado num episódio antigo da série "Testemunha Silenciosa"
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