Numa tarde tórrida de Agosto, três vultos femininos avançavam pela Rua de Costa Cabral, cosidos às paredes e muros, na tentativa vã de escapar à canícula inclemente, acentuada pelos gases dos escapes automóveis.
Bocas franzidas realçavam um mutismo que fazia adivinhar tensões latentes ou nem por isso.
O destino chegou com o cor-de-rosa dos altos muros e o preto do ferro forjado do enorme portão de acesso ao Hospital do Conde de Ferreira. A frescura dos jardins levava a cismar que os muros serviam agora tão só de protecção aos humores da meteorologia – já que os portões permanentemente abertos não protegiam nem as entradas nem as saídas – no que tinham a cumplicidade das árvores frondosas que rodeavam os edifícios vários – o Hospital, as velhas oficinas, agora sem uso, o matadouro, fechado em 1984, por força de alteração legal… -, que serviam também de pulmão verde contra a vizinha VCI.
Pelo rabo do olho, as três mulheres investigaram o estado do casario do outro lado da rua. Um horror, uma desolação. Melhor não ver. E todas fizeram de conta que não haviam visto para evitarem falar daquela ruína que há muito passara de anunciada a consumada.
Na recepção explicaram ao que vinham, uma entrevista com a Sra Dra Fulana de Tal, a qual não estava, apesar da entrevista marcada. Após muita troca de palavras, foram finalmente encaminhadas para uma sala de espera, situada a tardoz do edifício, para o que tiveram que atravessar incontáveis corredores atapetados de granito e forrados de grossas paredes de pedra e estuque, e cruzar-se com alguns doentes, quase todos homens, que as olhavam com misto de espanto e indiferença e cujas miradas nenhuma das três conseguia sustentar. A indiferença dos doentes era um modo de vida, um quase atavismo que funcionava como antídoto do sem sentido de existências que apenas um documento de identificação teimosamente atestava.
A sala de espera revelou-se abençoada pela mesma penumbra e pelo mesmo frescor que impregnavam os corredores. As três mulheres sentaram-se e trocaram entre si palavras de circunstância – será que a Sra Dra Fulana demora muito? Olhavam-se os relógios, confirmavam-se as horas nos telemóveis. E nada mais para dizer, senão esperar.
Neste entretanto, abre-se uma porta, e três cabeças femininas voltam-se na direcção da mesma, esperando ver a Sra Dra Fulana, que nenhuma conhecia. Tiveram a certeza de que não era a Sra Dra Fulana porque quem entrou era um homem, daqueles residentes habituais do Hospital. Magro, seco, olhar meio vago. Com um ligeiro sorriso matreiro nos lábios, perguntou “As meninas não me dão um cigarrito?! E cinquenta cêntimos para um café?!”
O franzido das comissuras dos lábios das “meninas” desapareceu como que alisado por um potente ferro de engomar. Pois a verdade é que a média de idade das três rondava os setenta anos. E serem tratadas por meninas, bem, é típico do Porto, mas mesmo assim, dava lustro ao ego de qualquer uma…
Infelizmente não fumavam e trocado também não havia. Sorriso do cavalheiro, não fazia mal, ficava para a próxima. Mas, ainda assim, voltou à carga com os cinquenta cêntimos. Que tivesse paciência, mas não podia ser. Pacientou-se o homem e saiu da sala de espera.
Meia hora havia passado e da Sra Dra Fulana, nada. Uma das mulheres puxa do telemóvel: “Sra Dra Fulana? É sicrana, não se lembra? Ficamos de nos encontrar hoje… ah, esqueceu-se, está na Póvoa, bem realmente é um bocadinho longe. Bom, eu tinha vindo de fora de propósito para a entrevista, não faz mal, não faz mal (hipócrita!), muito bem, então fico à espera que me telefone de volta, boa tarde”.
Na saída reencontraram o conhecido dos cigarros e cafés. Olhando directamente nos olhos da mais velha das três, comentou: “Tão linda! Tão branquinha! Parece mesmo uma japonesinha! Olhe, a menina casava comigo, se eu lhe pedisse?!”
Escusado será dizer que o pedido teve a mesma resposta dos cinquenta cêntimos para o café, desta feita acompanhada de muito riso.
Ah, e a Sra Dra Fulana não mais marcou qualquer entrevista, embora já tenham passado mais de dois anos e cinco meses sobre a tarde em que tudo isto aconteceu.
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