Domingo passado olhei para a estante e retirei:
(i) livros que tenho há mais de vinte anos e nunca li nem tenho qualquer vontade de ler (Mishima, Céline, brrrrr...);
(ii) livros que tenho há muitos, poucos ou nem por isso anos e que nunca consegui ler apesar de já ter tentado várias vezes (alguns Durrel por causa das péssimas traduções) ou, pior, não ter tentado nunca (como por exemplo, um livro que me deram como bónus da assinatura da revista LER ou um outro chamado A Magia Sexual (sem comentários!) que me ofereceram numa Feira do Livro (juro!) depois de ter gasto a enorme fortuna de 20€ em super-saldos de crónicas do Esteves Cardoso nos tempos em que tinha piada, do Pulido Valente, à época tão venenoso como agora, versos do Leonard Cohen e Contos do Jack London (este último foi o único que li, mas sei que vou ler os outros todos, tão certo como já não me lembrar sequer de que os comprara!!!);
(iii) livros que li e nunca mais vou ler, tenha ou não gostado;
(iv) livros que li e não consigo perceber porquê: Mensagem do outro lado do Mundo (!!!), Aprender a ser feliz, Lidar com o stress, Pode mudar a sua vida - pois posso, sobretudo se deixar de comprar e ler estas porcarias; outros, como A Força do Optimismo, cuja leitura abandonei quando descobri que as pessoas mais optimistas e têm mais fé no futuro são as que sofrem de cancro (passo!), doenças degenerativas do sistema nervoso (passo!!) ou são para/tetraplégicas (passo!!!), tendo preferido continuar pessimista para o resto da vida!
(v) quilos de livros para emagrecer, pois já descobri que emagrecer é fácil e começa sempre pela carteira e pela conta bancária, difícil é conseguir ficar magro onde se quer, pelo que o melhor mesmo é, sem stress e sem grande ambição de mudar a minha vida, assumir - com muito realismo pessimista - que às vezes vou cometer abusos e comer mais do que a conta, e passar a comer todos os dias, admitindo, optimisticamente, que o pão nosso de cada dia é um dado adquirido;
(vi) livros de culinária com receitas que apenas servem para ganhar quilos e livros a mais.
Em consequência do que antecede, fiquei com imensos megabytes cor-de-rosa na estante, pois já tinha doado um caixote com livros maior do que uma mala autorizada a viajar em cabine de avião, e tenho andado a fazer "passagens de testemunho" de livros viciantes (ia escrever "literatura" mas emendei pois de literatura têm pouco, apesar de não resumir a literatura ao Tolstoy, ao Dostoievsky, ao Mann) que já li e não tenciono voltar a ler (alínea (iii) supra, portanto), a saber, Dan Brown, Daniel Silva, Steven Saylor, policiais ingleses muuuuiiiito deprimentes, ou de outros como O Diário de Bridget Jones e As Pontes de Madison County (alínea (iv) supra, portanto, e isto só para referir dois exemplos infelizes e desprestigiantes da reputação de qualquer literato do eixo Chiado / Bucholtz - categoria na qual não me incluo, desde logo porque tenho ar de quem toma banho todos os dias e visto roupa passada a ferro e estou mais ou menos semi-publicamente a assumir que já li porcarias - e muito provavelmente ainda lerei mais, e não, não estou a falar do Diário da República, porque este não é por devoção).
Talvez consiga arranjar gigas cor-de-rosa na estante se tiver coragem para despachar:
1.º alguns monos diversos que tenho a secreta esperança de poder vir a ler mas sei que nunca lerei (tão secreta e tão esperança como a de ganhar o euromilhões apesar de nunca apostar);
2.º as Histórias Universais do Círculo de Leitores compradas antes de entrar na Faculdade (ou seja, em 1900 e não digo mais) e nunca lidas ou, sequer, consultadas;
3.º as Psicologias diversas que, sem serem da treta, também nunca lerei, pois desisti de querer compreender os outros e percebi que compreender-me a mim não me ajuda a aprender a ser feliz, antes pelo contrário...
4.º o Murakami todo, quando recuperar da depressão em que caí em Abril de 2007 depois de ler de rajada quatro dos seus livros e de alguém – que, com toda a certeza, me queria hospitalizar em Rilhafoles... – me ter oferecido mais três que me recuso a ler sem ser com Prozac directamente na veia e respiração assistida;
5.º o Kundera, porque não tenho a pachorra nem o tempo que tinha em 1988, 1989 e 1990 quando li tudo o que dele então se publicou (era a revolução de veludo, hélas!);
6.º se calhar o Gore Vidal, que li quando li o Kundera, porque o tempo dele, para mim, também já passou.
Com isto, já poupei 500€ numa estante nova que ia comprar no IKEÁ (ou será na IKEIA?!), mas que vou investir já a seguir num iPAD para fazer download de livros, sobretudo em versões originais.
Só não vou conseguir poupar assim tanto porque parece que os iPADs estão sempre esgotados - deve ser da crise - e lá vou a correr para a Amazon comprar os Barnes que me faltam, o Roth e o Coetze para substituir o Murakami e justificar compras de novos manuais de psicologia e auto-ajuda e aí não só terei gasto em livros como ainda terei que comprar a estante.
Bom, acho melhor começar tudo de novo, porque a ideia é mesmo esvaziar a tulha dos livros e não enchê-la outra vez, ainda que apenas virtualmente.
P.S.: Já enchi um saco do Pingo Doce, daqueles que custam só 0,50€, e parece-me que ainda vou encher mais; o Kundera, a Joanne Harris o Murakami, o Vidal, as psicologias já saltaram das prateleiras e jazem exangues no chão do quarto de hóspedes, à espera da do veredicto – partem? não partem? partem já? partem só daqui a seis meses? vão para pass downs? vão para a ACA?
Escrito originalmente em Julho de 2011, a propósito de uma doação de livros à Biblioteca da Associação Coração Amarelo.
Adenda de Dezembro de 2014
- Kundera, Murakami e Vidal foram, em regime de comodato e termo de responsabilidade, para outra casa;
- Joanne Harris “voou” em passagens de testemunho;
- as “psicologias" foram para parte incerta;
- no fim de 2011, naquele que foi o meu último assomo de consumismo literário, comprei uns dez livros da Rosa Montero - só tinha que comprar um, para o Club de Lectura, mas como estava com a mão na massa, leia-se, no rato, foram só mais uns clics e lá vieram os outros todos, que por acaso já li quase todos…;
- entretanto, fiz-me sócia de três Bibliotecas Públicas e apenas comprei livros para o Club de Lectura quando não os encontrava na do Cervantes;
- num processo que demonstra à saciedade que a minha relação com a aquisição de livros é a mesma de Penélope com o seu manto, também comprei alguns “must have” na feira do livro (Rentes de Carvalho, Esteves Cardoso, Jack London, Sandor Marai, alguns livros de culinária muito bons) em saldos de 50% da Imprensa Nacional (Nemésio, Régio), no total uns 30 livros, ou mais, a maior parte dos quais não lidos mas têm uns lindos autógrafos dedicados à minha pessoa;
- já consegui começar a “deitar abaixo” a lista dos não lidos, como é o caso de O Quarteto de Alexandria, comprado no ano da Queda do Muro de Berlim, e de um Torga comprado há mais de uma década;
- por fim, mas não menos importante, tenho o tão ambicionado ipad mas não tenho tempo para (aprender a) fazer downloads…Ora bolas!!!

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