Desde cedo tive alergia às disciplinas de ciências, alergia que crescia na proporção directa da exactidão das ditas.
Lembro-me de, ainda na escola primária (o ensino hoje dito básico) ter tido três problemas de aritmética errados numa das provas periódicas. Uma vergonha, agravada pelo facto de o meu encarregado de educação, na hora de assinar a prova, ter escrito “Vi e fiquei mal impressionado…”.
Até que, surpresa, surpresa! cheguei ao 3º ano do liceu (hoje 7º unificado) e comecei a “aviar” números negativos, equações e sistemas (acho que estes só entraram em cena no ano seguinte, mas não faz mal, nesse ano o “aviamento” continuou) como quem bebe copos de água. E os testes reflectiam essa realidade: Muito Bom, Muito bom, Muito Bom; notas de 16 e 18 no fim de cada período. Os exercícios dos CADERNOS do Palma Fernandes (ao que consta hoje, um perigoso retrógrado das matemáticas…) despachados com uma perna às costas…
Se o paraíso existia, o meu estava certamente naquela sala de aulas das “cavalariças” da ala velha do Liceu Rainha Santa: corriam-me bem as chamadas de Química (cuja professora era particularmente antipática e se me dirigia nos seguintes termos: “Nós, número 30, prepare-se para a chamada” sendo que “nós” era eu e o “nº 30” a maneira pouco elegante que ela tinha de não me tratar pelo nome próprio, que aliás deveria desconhecer); em Geografia aprendi o que ainda hoje sei de ventos, correntes, marés, latitudes e longitudes, nuvens, e sei lá que mais, e por via disso consegui perceber melhor as rotas dos Descobrimentos e a “descoberta” do Brasil.
Vivi uns meses em estado de graça, quando não de embriaguez.
Pois é, o pior foi a ressaca…
Com tanta novidade boa para aprender, descurei por completo as Ciências Naturais, que naquele ano versavam sobre Zoologia – peixes, batráquios, répteis, aves e mamíferos, ou seja, uma seca. Não me lembro de ter estudado o que quer que fosse e em Janeiro o ponto correu mal, tão mal que antecipei o veredicto que surgiu uma semana depois com uma simples palavrinha: Medíocre. Assim, em vermelho cor de carne viva, sem apelo, só agravo, um estalo na cara a pôr-me em sentido e a fazer-me descer das nuvens estratosféricas em que andara a pairar com tanto Muito Bom a Matemática e Bom não sei que mais a Físico-Químicas, uma passagem directa da corrente quente do Golfo para a corrente fria do Labrador…
A sorte que tive foi que se viviam tempos conturbados lá por casa – por via do PREC político e doutros PRECs caseiros, o certo é que ao feroz encarregado da minha educação se lhe olvidou perguntar-me o resultado daquele particular ponto. Diga-se em abono da verdade que eu, apesar da tenra idade, sabia-a toda, pelo que me armei em santinha, com o mais baixo perfil que se possa imaginar, fazendo um ar de imensa modéstia de cada vez que recebia um Bom, ou Bom Mais ou c/ distinção ou mesmo Muito Bom nas Matemáticas, Químicas ou Geografias. Os Bom menos a Português e os Bons a História, Francês e Inglês compunham o ramalhete. E o Desenho nunca contou para nada.
Dediquei-me então, com uma fúria inaudita e avassaladora, a estudar o compêndio de Zoologia até ao fim - com uma tal dedicação, que mais parecia estar ler Os Três Mosqueteiros - decorei todos os sistemas respiratórios, circulatórios e digestivos de todos as categorias de animais, dissequei uma rã, era a primeira a querer responder às chamadas e acabava as frases da professora. No teste seguinte fui recompensada com um bom com distinção. Suspirei de alívio. Que foi breve. Porque a nota final desse período foi a mais baixa de todas, mesmo mais baixa do que a de desenho: 11, como a idade que eu tinha. Não foi um balde de água fria, foi um mergulho sem aviso prévio nem atenuador de impacte numa calote polar.
O feroz encarregado de educação estranhou o 11 – então eu não tivera um bom com distinção?! Pois sim, era verdade, mas tinha tido umas chamadas que me tinham corrido muito mal, estava pouco preparada, e puxaram a nota para baixo.
De sobrolho franzido e voz grossa, disse-me o meu progenitor “Que não se repita, ouviste?”
Não sei se foi do susto apanhado se do ralhete com voz de poucos amigos, o certo é que nunca mais se repetiu…
Mas verdade, verdadinha, dá-me raiva pensar que pouco ou nenhum uso dou ao que decorei de batráquios, répteis e mamíferos, enquanto que a Matemática continua a ser de enorme utilidade e ainda percebo a influência do anticiclone dos Açores nas previsões meteorológicas...
Sem comentários:
Enviar um comentário