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segunda-feira, 19 de junho de 2023

HÁ MAIS LÁ DENTRO

Em questão de infelicidade, não há como fazer como nas mesas da província, quando se quer pôr um hóspede à vontade e que ele coma: “Há mais lá dentro”, diz-se. Podem servir-se dos meus ridículos, dos meus safados desgostos, porque há mais cá dentro. 
Agustina Bessa-Luís “Os meninos de Ouro”

Em novos, cremo-nos jovens, belos e poderosos, e, sobretudo, eternos, não há dificuldades, escolhos, pedras que desviem a nossa marcha do caminho, sempre triunfal, nada menos do que em direcção ao Olimpo, na Terra, claro, que a nossa eternidade é terrena. E há tantos mais caminhos quantos menos os nossos anos de vida. O problema – há sempre um problema – é que temos que escolher: vamos pela direita, vamos pela esquerda, subimos a ravina, descemos o caneiro, atravessamos o ribeiro, serpenteamos pela margem? E com cada escolha, estreita o caminho a trilhar e alarga-se o delta do que não se trilhou, que assim se eleva à categoria de mito e como tal arquivado naquele Olimpo cada vez mais longínquo. Coleccionamos desilusões, na medida proporcional directa das ilusões que cultiváramos. Acumulamos perdas, oh se acumulamos, também na directa proporção da idade que avança. E, cá dentro, a tristeza, as perdas e as desilusões crescem como a inflacção em tempos de crise. Aqui chegados, ou as arquivamos num arquivo muito morto e conjugamos o verbo “seguir em frente” ou as preservamos em estufas, quais orquídeas delicadas, e dedicamo-nos a colher as flores do nosso descontentamento. Há mais lá dentro, cá dentro. Há sempre. Quer sigamos na rudeza da vida quer cristalizemos na estufa fria da tristeza.

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