A casa atulhada de caixotes era a imagem inversa duma vida atulhada de vazios – vazios emocionais, vazios relacionais, vazios que se instalaram, medrosamente e quase pedindo desculpa primeiro, e logo se alastrando insidiosamente a todos os cantos e recantos daquele corpo, daquela alma morta, qual personagem de Gogol.
No lugar do coração, o vazio, um
vazio que batia ritmadamente, sem inflexões nem alterações, qual relógio suíço,
com a diferença de que não tinha nem precisava de corda, dia e noite, noite e
dia, tic tac, tic tac, tic tac… Era assim desde o dia em que, a sangue frio, lho
haviam amputado. E, desde esse dia, os dias repetiam-se – tic tac, tic tac, tic
tac…
Um dia em que a luz faltou – nunca soube se foi apagão ou corte por falta de pagamento – tropeçou num caixote, tropeçou tão violentamente que voou. Não se pode dizer que tenha sido um voo ao encontro da liberdade, antes foi um voo de encontro à esquina do psiché que resultou num golpe vertiginoso no parietal e numa dor cega que fez jorrar no peito, outrora morno e ritmado, um disparo de sangue quente, uma batida frenética. O despertador, fazendo jus ao nome, irrompeu num estrondoso despertar, e o bibelot em forma de mocho resvalou da prateleira do psiché, estatelando-se, não menos estrondosamente, em mil estilhaços.
exercício de escrita criativa à volta do Livro Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo
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