Estamos
no Carnaval, época de folia e máscaras, em que, até à quarta-feira de cinzas, toda
a transgressão é permitida, época de intervalo e passagem porque logo entram em
vigor as proibições da quaresma, a penitência, 40 dias sem carne, sextas-feiras
de jejum, só com água chalada, tão chalada como hoje chalados nos parecem esses
costumes de antanho. Lembro-me de os dias de Carnaval, Domingo e terça-feira,
serem alcunhados de “gordos”, devido à profusão das carnes gordas no cozido e na
feijoada, então pratos tradicionais desses dias festivos. Lembro-me mais dos
cinco dias de pausa, de sábado a quarta-feira, sim porque sábado era dia de aulas
na escola, da compra da nova máscara, sexta-feira à tarde, na drogaria do bairro
– e que devia estar cheiinha de agentes tóxicos mas a mim só me incomodava devido à abundância de transpiração na cara. Lembro-me em especial do único
Carnaval passado na Covilhã, as viagens numa Serra coberta de neve, tão alta que
ultrapassava o tejadilho do carro, e tão fofa que mais parecia chantilly ou
claras em castelo, do sol radioso, o céu azul, duma tarde passada numa lagoa, a
pescar (não eu, claro), e de, qual esponja, ter absorvido as conversas dos
adultos, tanto que pela primeira vez ouvi o nome Hemingway e a recomendação de
que O Velho e o Mar seria a sua melhor obra. Ficou a recomendação na memória e,
aos 15 anos, comprei na Feira do Livro O Adeus às Armas, aos 39 li o Jardim do Éden,
nenhum me empolgou - tanto que nada mais dele li, apesar de algumas das suas obras
forrarem as estantes da casa paterna. Talvez aos 15 me tenha empolgado com a
ideia de estar a entrar na vida adulta porque adultos eram aqueles que anos
antes se embeveciam com tal famosa escrita – isso ou apenas porque, ao citar
Hemingway, passariam uma imagem de cultura e modernidade, num país em que a
francofonia era rainha absoluta, no gosto e na forma.
Este
ano dei conta do Carnaval porque a rua ficou órfã de carros, só isso, porque crianças
mascaradas, confettis ou serpentinas não me passaram à frente. As modas mudaram,
cá em casa, carne nem vê-la, seja magra seja gorda, e cometo a suprema heresia
de comer peixe em dia de Domingo Gordo.
Quarta-feira
começa a operação biquíni, a malta a correr para os ginásios enquanto pratica
jejuns, ditos intermitentes, bebendo nada mais do que águas perfumadas, já não
chaladas, e, nos intervalos, emborca batidos de proteínas, feitos ninguém sabe
de quê mas que emagrecem imenso e criam massa muscular, ou abacates fatiados
decorados com frutos silvestres, que mais deveriam chamar-se de frutos
estufados porque oriundos de estufas e não de silvas.
Mas hoje,
dia de domingo gordo, vou simplesmente sair e levar no toutiço com as poeiras
que vêm de África, dançar para elevar a pulsação e estimular o coração, produzir
endorfinas, para, também simplesmente, ficar de bem com a vida, seguindo a
simplicidade dos ensinamentos duma saqueta de açúcar oferecida por marca da moda que
chama lattes às meias de leite e espressos às bicas.
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