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quarta-feira, 23 de março de 2022

A TELA


É um quadro quadrado, com 20 vezes 20 centímetros, fundo branco, dado pela tela, virgem de óleo, acrílico, aguarela ou pastel.

Linhas depuradas negras desenham um rosto feminino, que convocaria Modigliani não fosse uma venda donde exorbitam uns olhos excêntricos sugerir um Picasso dos anos 30.

Comprei-o numa feira da ladra, nas margens do Sena, atraída que fui pela incongruência – até hoje insolúvel – de juntar numa só obra traços de dois pintores das vanguardas seminais do século XX. E isto porque, a par de vanguardas, gosto de incongruências e de falsas aparências.

Já em pequena me fascinavam os postais brilhantes e garridos em que uma mulher aparecia ora sorridente, de cabelo armado e piscar de olho maroto, ora de olhos bem abertos, bandolete e lábios sérios. Noutros postais, atraía-me a dicotomia dum pôr-de-sol em brasa e duma lua cheia grávida de luz. Neste caso, porém, não tenho a certeza de que os postais tivessem existido mesmo ou apenas na minha imaginação.

À minha tela branca de 20 vezes 20 centímetros chamo o meu Modiglicasso, pintor imaginário de vida pouco boémia que cria obras de arte originais de grandes pintores falecidos.

Um dia, ofereceram-me por ela uns valentes milhares de euros. Fiquei rica. Ou pelo menos é o que penso quando a admiro, agora escondida, filha de pintor incógnito.

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