Páginas

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

VANITAS VANITATUM ET OMNIA VANITAS...

Há uma coisa que eu nunca disse a ninguém: não sei nem nunca soube cantar. Construí a minha carreira alicerçada em excelentes composições musicais, letras sofríveis e um play-back  trabalhado até ao limite do perfeccionismo superlativo.

Tudo começou com o meu desejo de ser vedeta e a forte convicção de que reunia as condições para tal – uma notável presença, capacidade de transfiguração, exuberância camaleónica, exibicionismo digno de casta diva. Tudo. Excepto a voz.

Uma delicada operação cirúrgica colocou-me implantes que, em qualquer local e situação, projectam a voz do meu “cantor fantasma”. A minha arte consiste no trabalho mimético, levado ao supra-sumo da perfeição.

Há outra coisa que eu nunca disse a ninguém: todas as minhas canções foram gravadas no início da minha carreira, após o que assassinei o fantasma da pop.

Torno públicas estas duas confissões hoje, dia em que se realizou o meu funeral. É verdade, morri! Não sabiam?! Pois não, também nunca disse a ninguém

No tempo anterior àquele em que passou a haver coisas que nunca disse a ninguém já havia muitas coisas não ditas. Nesse tempo, eu era mais pobre do que o pobre Jó e isso não precisava de ser dito porque estava à vista de todos, que me desprezavam pelas minhas origens e condição social, mas amizades com colegas abastados e pouco dotados ou simplesmente preguiçosos permitiram-me rentabilizar as minhas competências e conhecimentos escolares e culturais, proporcionando-me em simultâneo a entrada em casas de sonho - piscinas, courts de ténis, empregados fardados – das quais foram saindo objectos valiosos, suficientemente pequenos para caberem em mochilas, e que me permitiram começar a consolidar o pé-de-meia para os meus voos futuros.

O desprezo com que me brindavam era mútuo e recíproco, o isso não era preciso (nem conveniente) dizer mas dediquei-lhes uma intolerância inversamente proporcional à tolerância que tinham para comigo.

Outra das coisas não ditas é que o cantor fantasma era um deles. A diferença é que se apaixonou por mim. Um clássico de film noir em versão pirosa. Passávamos horas na casa dos barcos a cantar e a compor canções. Fugimos para uma grande cidade, na qual o seu apelido sonante e o meu pé-de-meia abriram as portas dum estúdio onde foram gravadas todas as canções do meu vasto portfolio.

Depois, matei-o.

Fiz a operação dos implantes e, coisa que nunca disse a ninguém, uma operação de reconstrução facial e corporal que me permitiu adoptar a identidade do cantor fantasma assassinado. Afastei-me da família e comecei a minha nova vida.

Tive sucesso, oh se tive! Vinte anos de discos de platina, tournées à volta do mundo, fãs em delírio, tudo potenciado pelo facto de eu manter reserva absoluta sobre a minha vida privada – não havia entrevistas, os fotógrafos eram afastados com métodos suficientemente persuasivos para não voltarem a incomodar-me…

Um dia, apareceu-me o meu pai, quer dizer, o pai do fantasma da pop. Estava doente e queria rever-me. Apesar de não conseguir esquecer-me do quanto me humilhara no tempo em que havia coisas por dizer, tive pena daquele velho desprezível e acedi a recebê-lo no meu camarim, onde ficamos a falar enquanto eu lhe servia o malte de 18 anos envelhecido em três cascos que sempre me acompanha.

Outra coisa que nunca disse a ninguém é que me custava imenso não poder partilhar os meus sucessos invisíveis, aqueles que nada tinham a ver com a minha carreira de estrela da pop mas que eram os verdadeiramente importantes para mim. Vanitas, vanitas

Desembaracei e desfiei anos de silêncios gelados dos tempos das coisas que ficaram por dizer. Vanitas, vanitas

As palavras derretiam-se lentas enquanto o meu corpo foi consumido por um frio rápido e rígido que finalmente me calou e paralisou. Já não havia mais coisas por dizer que não tivessem já sito ditas. Vanitas, vanitas

Encarei aquele velho desprezível que vezes sem conta abusara do meu duplo eu. O seu coração foi o último músculo a morrer atrofiado pela cicuta.

Tudo isto se passou na véspera do dia do meu funeral. Verti lágrimas pela minha morte. O caixão fechado encerrava o corpo decrépito do velho mesquinho e abusador, cuja identidade eu agora ocupava. Não vos tinha já dito que tenho uma enorme capacidade de transfiguração e uma versatilidade camaleónica?!

Sem comentários:

Enviar um comentário