Há uma coisa que eu
nunca disse a ninguém: não sei nem nunca
soube cantar. Construí a minha carreira alicerçada em excelentes composições
musicais, letras sofríveis e um play-back
trabalhado até ao limite do
perfeccionismo superlativo.
Tudo começou com o meu desejo de ser vedeta e a forte
convicção de que reunia as condições para tal – uma notável presença,
capacidade de transfiguração, exuberância camaleónica, exibicionismo digno de
casta diva. Tudo. Excepto a voz.
Uma delicada operação cirúrgica colocou-me implantes que,
em qualquer local e situação, projectam a voz do meu “cantor fantasma”. A minha
arte consiste no trabalho mimético, levado ao supra-sumo da perfeição.
Há outra coisa que eu
nunca disse a ninguém: todas as minhas canções
foram gravadas no início da minha carreira, após o que assassinei o fantasma da
pop.
Torno públicas estas duas confissões hoje, dia em que se
realizou o meu funeral. É verdade, morri! Não sabiam?! Pois não, também nunca disse a ninguém…
No tempo anterior àquele em que passou a haver coisas que nunca disse a ninguém já havia muitas coisas não ditas. Nesse tempo, eu era mais pobre do que o pobre Jó e isso não precisava de ser dito porque estava à vista de todos, que me desprezavam pelas minhas origens e condição social, mas amizades com colegas abastados e pouco dotados ou simplesmente preguiçosos permitiram-me rentabilizar as minhas competências e conhecimentos escolares e culturais, proporcionando-me em simultâneo a entrada em casas de sonho - piscinas, courts de ténis, empregados fardados – das quais foram saindo objectos valiosos, suficientemente pequenos para caberem em mochilas, e que me permitiram começar a consolidar o pé-de-meia para os meus voos futuros.
O desprezo com que me brindavam era mútuo e recíproco, o
isso não era preciso (nem conveniente) dizer mas dediquei-lhes uma intolerância
inversamente proporcional à tolerância que tinham para comigo.
Outra das coisas não ditas é que o cantor fantasma era um
deles. A diferença é que se apaixonou por mim. Um clássico de film noir em versão pirosa. Passávamos
horas na casa dos barcos a cantar e a compor canções. Fugimos para uma grande
cidade, na qual o seu apelido sonante e o meu pé-de-meia abriram as portas dum
estúdio onde foram gravadas todas as canções do meu vasto portfolio.
Depois, matei-o.
Fiz a operação dos implantes e, coisa que nunca disse a ninguém, uma operação de reconstrução
facial e corporal que me permitiu adoptar a identidade do cantor fantasma
assassinado. Afastei-me da família e comecei a minha nova vida.
Tive sucesso, oh se tive! Vinte anos de discos de
platina, tournées à volta do mundo, fãs em delírio, tudo potenciado pelo facto
de eu manter reserva absoluta sobre a minha vida privada – não havia
entrevistas, os fotógrafos eram afastados com métodos suficientemente persuasivos
para não voltarem a incomodar-me…
Um dia, apareceu-me o meu pai, quer dizer, o pai do
fantasma da pop. Estava doente e queria rever-me. Apesar de não conseguir
esquecer-me do quanto me humilhara no tempo em que havia coisas por dizer, tive
pena daquele velho desprezível e acedi a recebê-lo no meu camarim, onde ficamos
a falar enquanto eu lhe servia o malte de 18 anos envelhecido em três cascos
que sempre me acompanha.
Outra coisa que nunca
disse a ninguém é que me custava imenso
não poder partilhar os meus sucessos invisíveis, aqueles que nada tinham a ver
com a minha carreira de estrela da pop mas que eram os verdadeiramente
importantes para mim. Vanitas, vanitas…
Desembaracei e desfiei anos de silêncios gelados dos
tempos das coisas que ficaram por dizer. Vanitas,
vanitas…
As palavras derretiam-se lentas enquanto o meu corpo foi
consumido por um frio rápido e rígido que finalmente me calou e paralisou. Já
não havia mais coisas por dizer que não tivessem já sito ditas. Vanitas, vanitas…
Encarei aquele velho desprezível que vezes sem conta
abusara do meu duplo eu. O seu coração foi o último músculo a morrer atrofiado
pela cicuta.
Tudo isto se passou na véspera do dia do meu funeral. Verti lágrimas pela minha morte. O caixão fechado encerrava o corpo decrépito do velho mesquinho e abusador, cuja identidade eu agora ocupava. Não vos tinha já dito que tenho uma enorme capacidade de transfiguração e uma versatilidade camaleónica?!
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