Quando, em pequena, a vida me corria menos bem – uma negativa num teste de Ciências, o castigo que se seguia a uma resposta mais atrevida ao pater ou mater famílias, os joelhos esfolados como consequência de um salto imprudente – procurava voltar ao momento imediatamente anterior, como se o estado de negação inerente à fuga das responsabilidades fosse susceptível de alterar o passado. Vivi incontáveis “E se” até ter interiorizado que só nos contos de fadas ou no celuloide há lugar a estas segundas oportunidades – para os comuns mortais só existem mesmo as primeiras.
No
intervalo que dura a eternidade entre a infância e a idade adulta, fui praticando
competências de regressão emocional, na busca incessante do pormenor que poderia
alterar o rumo da vida e, sobretudo, da morte.
Vejo-me a
atender um telefonema enquanto atravesso a Avenida da Liberdade, no cruzamento
da Alexandre Herculano, num dia de quase Verão, estando as tílias floridas em
todo o seu frondoso esplendor – sabendo no entanto que tal é uma
impossibilidade absoluta pois eu estava onde estava o telefone fixo, ou seja,
em casa, e não consta que alguma vez tivesse tido o dom da ubiquidade. Sim, era
quase Verão e as doces tílias estavam em flor, como acontece em todos os
Junhos. Julho passou, veio Agosto, as tílias não mais em flor até cada Junho
seguinte.
Sobreveio
outro Agosto, de tílias despido, mas pleno de maresia azul e de crianças a
brincar, os seus gritos de alegria confundindo-se com os da minha aflição, pela
dor insidiosa de saber que uma parte de mim tinha sido amputada e que não há
próteses para o coração… Sim, era Agosto, o céu estava azul e no parque havia
crianças a brincar, mas o mar ficava a mil passos de caminho…
Num dia cinza carregado como o são os dias setentrionais de Dezembro cumpriu-se um destino anunciado por um Anjo outro que não o da Anunciação. No Prado do Repouso, as gotas da chuva molhada imprimiam nas folhas enceradas das japoneiras pequenos arco-íris que rimavam com as cores das camélias em flor. Na bobine da minha memória ficou assim gravada a cena desse dia embora a razão saiba que, em Dezembro, as camélias estão no futuro que há-de vir e não há arco-íris sem Sol.
(Outubro 2019)
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