Sem nunca a ter
conhecido e sem saber nada da sua vida, para além do que era público e (pouco)
notório, sempre tive uma enorme empatia com Margarida Sousa Uva desde que li uma
entrevista que lhe foi feita pela Marie Claire, no fim dos anos 80, princípios
dos noventa. Nessa altura, estava arredada do interesse pela política – votava e
lia O Independente, com cujo
anti-cavaquismo me identificava, e estavam feitas as despesas políticas – e não
sabia quem era Durão Barroso nem, obviamente, quem era a sua mulher.
Na entrevista,
Margarida falava da sua experiência de andar com a casa às costas para
acompanhar o marido e de como, sempre que se estava a instalar e a adaptar a um
sítio, lá voltava tudo à casa de partida, como no jogo da glória, glória que,
no caso, era, foi e seria ainda mais, a do marido, nunca a dela. Transpirava
das suas palavras alguma frustração pela impossibilidade de ter uma carreira
pois, sempre que iniciava qualquer projecto, lá vinham os dados lançados marcar
um avanço no caminho da glória do marido.
Anos mais tarde,
Margarida Sousa Uva assumiu publicamente a fibromialgia de que padecida.
Infelizmente, a fibromialgia é uma “doença” indefinida com muitos pontos de
interrogação e nenhumas respostas, pouco estudada e menos divulgada. Talvez
porque afecta maioritariamente mulheres, essas histéricas, sempre cansadas de nada
fazerem, sempre com dor aqui e dor acolá, sem qualquer razão e nenhuma
patologia visível associada. Talvez porque o diagnóstico de fibromialgia seja o
último recurso, tal como o das viroses infantis, quando não há mais nada que
encaixe no padrão das queixas. Talvez, talvez, talvez, muitas dúvidas e
nenhumas respostas.
Margarida assumiu
muitas causas, tendo a maior sido, sem dúvida, a da família, a sua, pela qual
abdicou de muito – para mim, abdicou de quase tudo aquilo que pode dar sentido
à existência de uma pessoa, que por mero acaso é mulher, inteligente,
culta e com formação superior. Para ela não terá sido fácil nem pacífico. Vejo
as fotografias dela, hoje, como as venho vendo desde que, em 2002, assumiu
maior protagonismo quando o marido se tornou Primeiro-Ministro, e vejo um rosto
sereno e bonito, mas no qual perpassa uma indisfarçável sombra.
Sombra que é
explicada no artigo que Margarida escreveu quando morreu Maria Barroso,
publicado no DN em 16 de Julho de 2015, e no qual disse quase tudo; o que não
disse, está subentendido e pode ler-se nas entrelinhas.
“(…) Dou-me mais uma vez conta de que tendo, durante
muito tempo, invejado terrivelmente a posição do homem, ser masculino, na
sociedade em que vivo, sinto hoje um particular orgulho pelo facto de ter
nascido mulher. Foram mulheres que ao longo de milénios e de incontáveis
gerações cuidaram dos outros, cuidaram dos seus, cuidaram da família, dos
amigos e dos doentes e dos mais velhos, sem disso fazerem alarido, como a minha
amiga soube fazê-lo. E se me consola ver que lentamente (quão lentamente e a
que preço!) nos aproximamos de uma igualdade de direitos efetiva relativamente
ao homem (o respeito, esse pequenino pormenor, por aquilo que é uma mulher,
esse ainda tem léguas para andar...), se me apraz ver um cada vez maior número
de mulheres a desempenhar funções com impacto no nosso viver comum e no
dia-a-dia de todos, sofro com e preocupa-me o abandono em que vivem tantas
crianças e tantos adolescentes. E pergunto--me: como podem as sociedades ser
tão estúpidas a ponto de não perceberem que crianças e adolescentes entregues a
si mesmos, ou a quem não os ama, não poderão senão crescer ervas daninhas ou
plantas tortas e doentes, que a comparação com um jardim se aplica? O que
impede a compreensão por parte de quem decide (governos, empresas) que crianças
e adolescentes não são "eles" mas sim "nós"? Que os mais
velhos, a quem devemos respeito e uma vida digna por tudo o que entretanto
fizeram, não são apenas os "eles" de hoje, serão (não é claro?) os
"nós" de amanhã? Não, não estou, afinal, a dizer que as mulheres têm
de ficar em casa a tratar dos filhos que os casais decidem ter e mais tarde
também dos pais que vão envelhecendo. A função de cuidador pode ser
desempenhada tanto pela mulher como pelo homem, é uma questão de cultura, uma
questão de hábito, uma questão de legislar em conformidade com esse princípio.
Mas quero agradecer a todas as mulheres que amaram o suficiente para se
conformar, quando isso se tornou necessário, com aquela que é ainda vista como
uma função menor e tão subvalorizada.
(…) mais de uma vez a vi indignar-se e
perguntar: "Mas porque hão de dizer que atrás de um grande homem está
sempre uma grande mulher? Porquê atrás? Porque não ao lado?" Mas... o povo
lá sabe o que diz. Eu era nova na altura. Hoje ter-lhe-ia respondido assim: ao
lado é só para a fotografia. Na realidade é mesmo atrás, atrás das cortinas,
fora do palco, que o amor atua e o mais importante se passa. O amor que, como
dizia São Paulo na sua carta ao Coríntios (13), "tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta". (…)
Não me interessa
que Durão Barroso tenha sido, na juventude, ML, radical e extremista. Quem
passou a juventude sem se apaixonar radicalmente por causas e, já agora, por
pessoas, sem várias vezes achar que vai morrer por não ser no amor
correspondido, sem apanhar umas valentes pielas, sem fazer noitadas, sem ter
muita/os (vá lá, alguns…) namorada/os, não foi verdadeiramente jovem (e acaba a
fazer figuras tristes quando chega aos quarenta ou aos cinquenta…). Aos 15 ou
16 anos sabemos tudo e temos a certeza de que vamos mudar o mundo. Ainda bem
que não o mudamos senão o mundo teria sido um lugar horrível (palavras mais ou
menos ditas por Pedro Baptista, ML dos idos de setenta e agora dirigente do PS,
numa reportagem da Pública de 2004 sobre ex-ML, entretanto figuras gradas da
Nação – Durão Barroso, José Lamego, Maria José Morgado, Saldanha Sanches,
Esther Mucznik, Pacheco Pereira, José Manuel Fernandes, Henrique Monteiro, e
tantos, tantos mais…).
Reconheço em
Durão Barroso muito inteligência, muito trabalho, muita determinação e muita
resistência – a par, claro, de muita ambição. Mas mesmo dotado de todas essas
qualidades, acho que Durão Barroso nunca teria sido quem é sem Margarida Sousa
Uva – a seu lado e por trás das cortinas...
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