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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

MARGARIDA SOUSA UVA

Sem nunca a ter conhecido e sem saber nada da sua vida, para além do que era público e (pouco) notório, sempre tive uma enorme empatia com Margarida Sousa Uva desde que li uma entrevista que lhe foi feita pela Marie Claire, no fim dos anos 80, princípios dos noventa. Nessa altura, estava arredada do interesse pela política – votava e lia O Independente, com cujo anti-cavaquismo me identificava, e estavam feitas as despesas políticas – e não sabia quem era Durão Barroso nem, obviamente, quem era a sua mulher.
Na entrevista, Margarida falava da sua experiência de andar com a casa às costas para acompanhar o marido e de como, sempre que se estava a instalar e a adaptar a um sítio, lá voltava tudo à casa de partida, como no jogo da glória, glória que, no caso, era, foi e seria ainda mais, a do marido, nunca a dela. Transpirava das suas palavras alguma frustração pela impossibilidade de ter uma carreira pois, sempre que iniciava qualquer projecto, lá vinham os dados lançados marcar um avanço no caminho da glória do marido.
Anos mais tarde, Margarida Sousa Uva assumiu publicamente a fibromialgia de que padecida. Infelizmente, a fibromialgia é uma “doença” indefinida com muitos pontos de interrogação e nenhumas respostas, pouco estudada e menos divulgada. Talvez porque afecta maioritariamente mulheres, essas histéricas, sempre cansadas de nada fazerem, sempre com dor aqui e dor acolá, sem qualquer razão e nenhuma patologia visível associada. Talvez porque o diagnóstico de fibromialgia seja o último recurso, tal como o das viroses infantis, quando não há mais nada que encaixe no padrão das queixas. Talvez, talvez, talvez, muitas dúvidas e nenhumas respostas.
Margarida assumiu muitas causas, tendo a maior sido, sem dúvida, a da família, a sua, pela qual abdicou de muito – para mim, abdicou de quase tudo aquilo que pode dar sentido à existência de uma pessoa, que por mero acaso é mulher, inteligente, culta e com formação superior. Para ela não terá sido fácil nem pacífico. Vejo as fotografias dela, hoje, como as venho vendo desde que, em 2002, assumiu maior protagonismo quando o marido se tornou Primeiro-Ministro, e vejo um rosto sereno e bonito, mas no qual perpassa uma indisfarçável sombra.
Sombra que é explicada no artigo que Margarida escreveu quando morreu Maria Barroso, publicado no DN em 16 de Julho de 2015, e no qual disse quase tudo; o que não disse, está subentendido e pode ler-se nas entrelinhas.
“(…) Dou-me mais uma vez conta de que tendo, durante muito tempo, invejado terrivelmente a posição do homem, ser masculino, na sociedade em que vivo, sinto hoje um particular orgulho pelo facto de ter nascido mulher. Foram mulheres que ao longo de milénios e de incontáveis gerações cuidaram dos outros, cuidaram dos seus, cuidaram da família, dos amigos e dos doentes e dos mais velhos, sem disso fazerem alarido, como a minha amiga soube fazê-lo. E se me consola ver que lentamente (quão lentamente e a que preço!) nos aproximamos de uma igualdade de direitos efetiva relativamente ao homem (o respeito, esse pequenino pormenor, por aquilo que é uma mulher, esse ainda tem léguas para andar...), se me apraz ver um cada vez maior número de mulheres a desempenhar funções com impacto no nosso viver comum e no dia-a-dia de todos, sofro com e preocupa-me o abandono em que vivem tantas crianças e tantos adolescentes. E pergunto--me: como podem as sociedades ser tão estúpidas a ponto de não perceberem que crianças e adolescentes entregues a si mesmos, ou a quem não os ama, não poderão senão crescer ervas daninhas ou plantas tortas e doentes, que a comparação com um jardim se aplica? O que impede a compreensão por parte de quem decide (governos, empresas) que crianças e adolescentes não são "eles" mas sim "nós"? Que os mais velhos, a quem devemos respeito e uma vida digna por tudo o que entretanto fizeram, não são apenas os "eles" de hoje, serão (não é claro?) os "nós" de amanhã? Não, não estou, afinal, a dizer que as mulheres têm de ficar em casa a tratar dos filhos que os casais decidem ter e mais tarde também dos pais que vão envelhecendo. A função de cuidador pode ser desempenhada tanto pela mulher como pelo homem, é uma questão de cultura, uma questão de hábito, uma questão de legislar em conformidade com esse princípio. Mas quero agradecer a todas as mulheres que amaram o suficiente para se conformar, quando isso se tornou necessário, com aquela que é ainda vista como uma função menor e tão subvalorizada.
(…) mais de uma vez a vi indignar-se e perguntar: "Mas porque hão de dizer que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher? Porquê atrás? Porque não ao lado?" Mas... o povo lá sabe o que diz. Eu era nova na altura. Hoje ter-lhe-ia respondido assim: ao lado é só para a fotografia. Na realidade é mesmo atrás, atrás das cortinas, fora do palco, que o amor atua e o mais importante se passa. O amor que, como dizia São Paulo na sua carta ao Coríntios (13), "tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta". (…)
Não me interessa que Durão Barroso tenha sido, na juventude, ML, radical e extremista. Quem passou a juventude sem se apaixonar radicalmente por causas e, já agora, por pessoas, sem várias vezes achar que vai morrer por não ser no amor correspondido, sem apanhar umas valentes pielas, sem fazer noitadas, sem ter muita/os (vá lá, alguns…) namorada/os, não foi verdadeiramente jovem (e acaba a fazer figuras tristes quando chega aos quarenta ou aos cinquenta…). Aos 15 ou 16 anos sabemos tudo e temos a certeza de que vamos mudar o mundo. Ainda bem que não o mudamos senão o mundo teria sido um lugar horrível (palavras mais ou menos ditas por Pedro Baptista, ML dos idos de setenta e agora dirigente do PS, numa reportagem da Pública de 2004 sobre ex-ML, entretanto figuras gradas da Nação – Durão Barroso, José Lamego, Maria José Morgado, Saldanha Sanches, Esther Mucznik, Pacheco Pereira, José Manuel Fernandes, Henrique Monteiro, e tantos, tantos mais…).

Reconheço em Durão Barroso muito inteligência, muito trabalho, muita determinação e muita resistência – a par, claro, de muita ambição. Mas mesmo dotado de todas essas qualidades, acho que Durão Barroso nunca teria sido quem é sem Margarida Sousa Uva – a seu lado e por trás das cortinas...

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