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domingo, 7 de abril de 2024

DA DOR DE PENÉLOPE E DAS LÁGRIMAS DE CALIPSO

O regresso, em grego, diz-se nostos. Algos significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo insatisfeito de regressar.

Foi na aurora da antiga cultura grega que nasceu A Odisseia, a epopeia fundadora da nostalgia. Sublinhemo-lo: Ulisses, o maior aventureiro de todos os tempos, é também o maior nostálgico. Foi (sem grande prazer) para a Guerra de Troia, onde ficou dez anos. Depois apressou-se a regressar à sua Ítaca natal, mas as intrigas dos deuses prolongaram o seu périplo, primeiro por três anos recheados dos acontecimentos mais insólitos, depois por sete outros anos que ele passou, refém e amante, com a deusa Calipso que, apaixonada, não o deixava partir da sua ilha.

No final do canto quinto da Odisseia, Ulisses diz-lhe “Por avisada que seja, sei que ao pé de ti Penélope ficaria sem grandeza nem beleza… E no entanto o único voto que faço todos os dias é voltar para lá, ver na minha casa o dia do regresso!

Ulisses viveu na ilha de Calipso uma verdadeira dolce vita, vida confortável, vida de alegrias. No entanto, entre a dolce vita no estrangeiro e o arriscado regresso a casa, escolheu o regresso. À exploração apaixonada do desconhecido (a aventura) preferiu a apoteoso de conhecido (o regresso). Ao infinito (porque a aventura entende não findar jamais), preferiu o fim (porque o regresso é a reconciliação com a finitude da vida).

Homero glorificou a nostalgia por meio de uma coroa de louros e estipulou assim uma hierarquia moral dos sentimentos. Penélope ocupa o seu topo, muito acima de Calipso.

Calipso, ah, Calipso! Penso muitas vezes nela. Amou Ulisses. Viveram juntos sete anos. Não se sabe quanto tempo Ulisses partilhara o leito de Penélope, mas não foi decerto tanto tempo. No entanto exalta-se a dor de Penélope e troça-se das lágrimas de Calipso.

Milan Kundera, A Ignorância

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