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terça-feira, 1 de novembro de 2022

DIA DE TODOS OS SANTOS

Acordo ainda de madrugada. É sábado. Mantenho-me imóvel para prolongar este momento só meu, de descanso e paz, sem a contaminação dos ruídos da casa, da rua, da cidade. O relógio vai avançar e terei que acordar para a vida lá de fora, mas por enquanto só quero viver, sentir e prolongar no corpo a memória de cheiros, beijos, suores, fluidos, da noite que passou, e que terão que ser limpos e desinfectados antes que entre no quarto a criada, misto de serva e de espiã de meu pai, que me escrutina com olhos assassinos, ainda assim menos assassinos do que os que me matariam se meu pai descobrisse a vida em que ando metida. Ninguém na casa sabe do alçapão do meu quarto, que descobri num dia de tédio como o foram todos os da minha infância, e que é uma passagem para um caminho subterrâneo que passa sob a Sé e que conduz depois à Cerca Moura. Foi aqui que conheci o meu amante, de quem não me separei uma única noite desde que há quarenta semanas nos conhecemos, numa noite de lua nova - dizem que tudo o que se começa na lua nova é especialmente auspicioso. Nessas noites, recolhemos ao Recolhimento, onde, ao abrigo de olhares indiscretos, acabamos adormecidos nos braços um do outro. Nas noites de lua cheia, corremos a cidade, vestidos de homem, descendo do Castelo para o Hospital Real, e, fugindo dos frades dominicanos, galgamos para o Carmo donde observamos a colina a nascente, branca e esquálida, como a luz que nela se reflecte. A nossa audácia cresce no quarto crescente que passamos no meu quarto, como nesta última noite.

Entra Beatriz, a criada. Finjo acordar, deixo-a levantar as roupas da cama e as minhas, deixo que me lave. Embora seja Novembro, a minha pele escalda e a água refresca-me. Deixo-me vestir e ataviar. Sei que meu pai me procura marido compatível com a sua posição de físico de nobre da Corte, e se ser cristão-novo prejudica tal desiderato, a fortuna que amealhou servirá de incentivo, a par da minha juventude e formosura.

Saio, por fim, acompanhada de Beatriz, para a Missa do Dia de Todos os Santos. Está um lindo dia de Sol. São oito horas. Descemos a colina pausadamente, temos tempo, a missa só começa às nove. Atravessamos as ruas e vielas que nos conduzem à igreja. O alvoroço e a febre que me consomem só acalmam quando vejo o meu amante. Persigno-me e finjo concentrar-me no missal. Adormeço. As noites brancas têm um preço.

Acordo com o ronco. Depois foram os estremeções, a igreja que desaba, fico sob uma viga, não me consigo mexer. Chega o fogo, e se é verdade o que dizem, purificada fiquei de todos os meus pecados. O meu crânio estala com o calor. Mantenho-me imóvel e prolongo para a eternidade a memória de cheiros, beijos, suores, fluidos, da noite que passou.

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