
Acordo ainda de madrugada. É sábado.
Mantenho-me imóvel para prolongar este momento só meu, de descanso e paz, sem a
contaminação dos ruídos da casa, da rua, da cidade. O relógio vai avançar e terei
que acordar para a vida lá de fora, mas por enquanto só quero viver, sentir e
prolongar no corpo a memória de cheiros, beijos, suores, fluidos, da noite que
passou, e que terão que ser limpos e desinfectados antes que entre no quarto a
criada, misto de serva e de espiã de meu pai, que me escrutina com olhos
assassinos, ainda assim menos assassinos do que os que me matariam se meu pai descobrisse
a vida em que ando metida. Ninguém na casa sabe do alçapão do meu quarto, que
descobri num dia de tédio como o foram todos os da minha infância, e que é uma
passagem para um caminho subterrâneo que passa sob a Sé e que conduz depois à
Cerca Moura. Foi aqui que conheci o meu amante, de quem não me separei uma
única noite desde que há quarenta semanas nos conhecemos, numa noite de lua
nova - dizem que tudo o que se começa na lua nova é especialmente auspicioso.
Nessas noites, recolhemos ao Recolhimento, onde, ao abrigo de olhares
indiscretos, acabamos adormecidos nos braços um do outro. Nas noites de lua
cheia, corremos a cidade, vestidos de homem, descendo do Castelo para o
Hospital Real, e, fugindo dos frades dominicanos, galgamos para o Carmo donde
observamos a colina a nascente, branca e esquálida, como a luz que nela se
reflecte. A nossa audácia cresce no quarto crescente que passamos no meu
quarto, como nesta última noite.
Entra Beatriz, a criada. Finjo
acordar, deixo-a levantar as roupas da cama e as minhas, deixo que me lave.
Embora seja Novembro, a minha pele escalda e a água refresca-me. Deixo-me
vestir e ataviar. Sei que meu pai me procura marido compatível com a sua
posição de físico de nobre da Corte, e se ser cristão-novo prejudica tal
desiderato, a fortuna que amealhou servirá de incentivo, a par da minha
juventude e formosura.
Saio, por fim, acompanhada de
Beatriz, para a Missa do Dia de Todos os Santos. Está um lindo dia de Sol. São
oito horas. Descemos a colina pausadamente, temos tempo, a missa só começa às
nove. Atravessamos as ruas e vielas que nos conduzem à igreja. O alvoroço e a febre
que me consomem só acalmam quando vejo o meu amante. Persigno-me e finjo
concentrar-me no missal. Adormeço. As noites brancas têm um preço.
Acordo com o ronco. Depois
foram os estremeções, a igreja que desaba, fico sob uma viga, não me consigo
mexer. Chega o fogo, e se é verdade o que dizem, purificada fiquei de todos os
meus pecados. O meu crânio estala com o calor. Mantenho-me imóvel e prolongo para
a eternidade a memória de cheiros, beijos, suores, fluidos, da noite que
passou.
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