CONVIDEI PARA JANTAR...
um poeta e músico, que
se lançou nos anos sessenta do século passado e que, com alguns baixos e
sobretudo muitos altos, já vai na quinta década dedicada às canções. Talvez
porque escreve e canta os e aos nossos sentimentos mais recônditos, consegue
sempre chegar e tocar os ouvidos das gerações que se sucederam àquela que seria
a sua geração natural - a dos baby-boomers de sessentas. Os
seus concertos estão sempre cheios de plateias em que se cruzam avós, filhos e
netos. Longevidade, sucesso e transversalidade geracional só igualados por Paul
Simon e, talvez, Bob Dylon.
Chegou cansado,
cansadíssimo, após as quase quatro horas do concerto Old Ideas Worl
Tour desta noite no Pavilhão do Atlântico, com o qual encerrou a
tournée europeia iniciada em 15 de Agosto último, na Bélgica. A apoteose foi
absoluta e a noite esteve perfeita, sem suspeição de brisa quanto
mais de vento, o que é raro no Verão lisboeta - só faltou mesmo uma
lua cheia em todo o seu esplendor para ser uma noite de pecado.
O fato clássico que
nunca abandona – segundo o próprio, foi um hábito ganho pelo facto de ser filho
de um alfaiate e de, em consequência, cedo se ter habituado ao conforto dos
fatos de bom corte - realçava o charme discreto de "bon vivant"
muito entradote, logo contraditado pelas patuscas botas de cow-boy americano
que lhe adornavam os pés. Um conjunto pouco congruente para o ideal europeu de
elegância mas que casa bem com os padrões no Novo Mundo. Este é o segundo
canadiano com quem travo conhecimento este ano e as botas que usam são
parecidas…
Aliás, a vizinha do
lado, que com ele se havia cruzado no patamar, piscara-me um olho guloso,
murmurando que o cavalheiro era muito charmoso…
Abandonou-se na chaise
longue e fechou os olhos. Observando-o meticulosamente, reparei como
parecia mais velho ao vivo (é sempre assim…), nas feições, carregadas pela
idade, que denunciam a genética que o nome, só por si, já anuncia.
Quando se tem à frente
um dos “cantautores” que nos acompanham há mais de trinta anos, cujas canções
dizem tudo o que sentimos, traduzindo igualmente os ares dos tempos que as
viram nascer sem que com isso percam a actualidade - antes pelo contrário - não
há nada para dizer.
Só ouvir o homem do
mundo, cosmopolita, que conhece e viu países, gentes, paisagens, que eu
provavelmente nunca verei e teve experiências que eu nunca terei – passando
muito bem, obrigada!, ao lado de algumas delas…
Conheço de cor a sua
obra, a que regresso sempre que preciso de “voltar a casa”, de me reencontrar, começando
pela incontornável Susanne, a que usa os símbolos do Exército de
Salvação, a que nos leva para o rio onde se ouvem os barcos e onde ela nos
oferece chá e laranjas que vieram da China e com ela queremos viajar porque ela
nos tocou a alma, passando pela Marianne de quem nos
despedimos, pelo Partisan que nos convoca Georges Moustaki,
outro cantautor dos sessenta mas que ficou pelo caminho, por In my
Secret Life, em que estamos sempre sós e o nosso coração é de gelo, apesar
da multidão que nos rodeia, por Alexandra leaving de quem
ainda não nos despedimos mas de quem já sentimos a falta porque a sabemos
perdida, para no Chelsea Hotel descobrirmos jovens
lendários e famosos - quiçá alter egos do meu convidado - que se amam mas fogem
uns dos outros, por Hey, That's no way of saying good-bye em
que há beijos cálidos e apaixonados e manhãs de amor sem fim. Podia falar de
muitas outras - The stranger song, Bird on the wire, Hallelujah, Dance
me to the end of love, e o resto da noite não seria suficiente para as
ouvir a todas e delas todas falar.
Não esqueço os anos de
chumbo, pouco inovadores, provavelmente coincidentes com os piores da sua
conturbada vida pessoal e as várias travessias no deserto que terá empreendido,
os álbuns inenarráveis, confrangedores, sem um fio condutor (à excepção,
talvez, do tema "The Guests" - tocado nesta tournée pela
primeira vez em décadas).
Uma década que só não
foi perdida porque, qual Fénix, renasceu em 1988 com "I’m your man".
Perfeição superlativa. Em I’m your man canta-nos a canção do
bandido que pensa que qualquer mulher quer ouvir - ele será tudo o que
quisermos que ele seja: amante, amigo, pai, médico, por nós rastejará, roubará,
desaparecerá, e aquela voz envolvente, cálida, já não imaculada mas ainda
límpida, faz-nos querer ouvir tais promessas vãs, sabendo embora o quão
vigaristas são...
Nesse álbum,
aborda os temas polémicos dos anos 80, cuja actualidade e
intemporalidade são, hoje mais do que nunca, por demais evidentes: “Everyboy
knows”, que nos fala da nova peste, que então estava a dar os primeiros
passos e cujas devastadoras consequências ainda não se adivinhavam, e que nos
grita que os ricos ficam sempre ricos e os pobres sempre pobres, e “First we
take Manahattan (then we take Berlin)", cujo título, por si só, é toda
uma declaração de intenções, poderiam hoje ser os hinos das manifs do dia 15 de
um qualquer mês de uma qualquer cidade da Europa nestes tempos de perigo
conturbado e inquieto…
Quando ambos retomámos o
contacto com a realidade, servi um delicado chá branco - também ele vindo da
China - observando todo o protocolo associado: escaldar o bule, ferver a água,
tirar-lhe a temperatura para apenas a verter no bule quando descesse para os
96ºC, esperar 4 minutos e retirar o cesto do chá. Falámos de ninharias e
trivialidades – dos vários tipos de chá, dos de folha miúda, fortíssimos, dos
de folha grande, mais fracos, da delicadeza dos chás resultantes das primeiras
e segundas apanhas (first and second flushes), dos domínios em altitude que se
traduzem na produção de chás pálidos de subtil sabor, dos aromatizados como o
Earl Grey (provavelmente o mais famoso conde do mundo…).
Ele contou-me então as
experiências havidas e histórias caricatas das suas tournées; não são muitas as
histórias porque as tournées são maratonas em que num dia se está numa cidade e
dois dias depois noutra a 1000km de distância, e assim sucessivamente, sendo
todo o tempo disponível guardado para recobrar forças. Mas nem por isso
abandona a celebração do Sabath judeu que faz questão de preservar. Aflorei a
sua badalada conversão ao budismo. O meu convidado sorriu com um esgar
ligeiramente escarninho e, cortando delicadamente o assunto, retorquiu-me que o
chá era efectivamente delicioso.
Percebi a mensagem – não
iria haver revelações de estados de alma nem outras inconfidências: ele só diz
o que quer e quer dizer pouco. Retive, pois, as perguntas que me queimavam os
lábios - como, por exemplo, saber até que ponto conhecia a obra de LLorca para
baptizar a filha com o apelido do poeta espanhol - e passei directamente ao
bolo de maçã, estreia absoluta de uma receita da casa materna que adaptei para
a macrobiótica e que segue no final da crónica.
Gostou do bolo. Eu
também. A adaptação à macrobiótica correu bem. Imaginei-me, qual Vovó Donalda,
rancheira (muuuuito moderna e giraça) cozinhando bolos e tartes de
maçãs, colhidas das árvores de uma qualquer quinta do Novo Mundo, enquanto
escuto as músicas a que volto sempre - Cohen, Simon&Garfunkel - em conjunto
e a solo -, Dylon, Brel, mas também Mozart e Händel, Bach e Vivaldi, Allegri e
Palestrina, Puccini e Tchaikovsky, sem esquecer Rodrigo Leão & convidados
-, leio os poetas e escritores das pradarias americanas - Whitman, Thoreau,
Emmerson - e lavo os olhos com os quadros de Hopper ou os trabalhos de
Rauschemberg, sem esquecer os grandes espaços da paisagem americana, que
permitem a concretização de todos os sonhos, sonhos estes que perpetuamente se
reciclam e renovam contra as marés da adversidade. O meu convidado é um filho
desse Novo Mundo que se reinventa e recria e não cede à má fortuna. Quantos
seriam capazes de, aos setenta e muitos (setenta e oito no seu caso), percorrer
milhares de quilómetros para cantar três ou quatro concertos por semana, durante
semanas a fio? E isto pelo quinto ano consecutivo! É verdade que a necessidade
de pagar o buraco financeiro cavado pela contabilista que lhe fugiu com o
dinheiro dos impostos e os acordos entretanto celebrados com os Serviços do IRS
funcionarão como um poderoso incentivo mas a força da genética e a confiança e
optimismo proverbiais do Novo Mundo são absolutamente determinantes.
Despedimo-nos em
silêncio. Da janela, vi-o entrar no carro que o levaria para o merecido
descanso de três semanas antes de iniciar a tournée americana, no dia 31 de
Outubro, em Austin, Texas.
Quando me preparava para
arrumar os despojos da ceia, descobri os seus discos e o seu livro de poemas
esquecidos em cima dum armário. Enquanto os re-alinhava nos locais a que
pertencem reparei que estavam, todos, autografados, pedido que não ousara
formular.
Já devem ter adivinhado,
claro, o meu convidado era Leonard Cohen.
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