Páginas

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

HÁ 10 ANOS


CONVIDEI PARA JANTAR...

um poeta e músico, que se lançou nos anos sessenta do século passado e que, com alguns baixos e sobretudo muitos altos, já vai na quinta década dedicada às canções. Talvez porque escreve e canta os e aos nossos sentimentos mais recônditos, consegue sempre chegar e tocar os ouvidos das gerações que se sucederam àquela que seria a sua geração natural - a dos baby-boomers de sessentas. Os seus concertos estão sempre cheios de plateias em que se cruzam avós, filhos e netos. Longevidade, sucesso e transversalidade geracional só igualados por Paul Simon e, talvez, Bob Dylon.

Chegou cansado, cansadíssimo, após as quase quatro horas do concerto Old Ideas Worl Tour desta noite no Pavilhão do Atlântico, com o qual encerrou a tournée europeia iniciada em 15 de Agosto último, na Bélgica. A apoteose foi absoluta e a noite  esteve perfeita, sem suspeição de brisa quanto mais de vento, o que é raro no Verão lisboeta -  só faltou mesmo uma lua cheia em todo o seu esplendor para ser uma noite de pecado.

O fato clássico que nunca abandona – segundo o próprio, foi um hábito ganho pelo facto de ser filho de um alfaiate e de, em consequência, cedo se ter habituado ao conforto dos fatos de bom corte - realçava o charme discreto de "bon vivant" muito entradote, logo contraditado pelas patuscas botas de cow-boy americano que lhe adornavam os pés. Um conjunto pouco congruente para o ideal europeu de elegância mas que casa bem com os padrões no Novo Mundo. Este é o segundo canadiano com quem travo conhecimento este ano e as botas que usam são parecidas…

Aliás, a vizinha do lado, que com ele se havia cruzado no patamar, piscara-me um olho guloso, murmurando que o cavalheiro era muito charmoso…

Abandonou-se na chaise longue e fechou os olhos. Observando-o meticulosamente, reparei como parecia mais velho ao vivo (é sempre assim…), nas feições, carregadas pela idade, que denunciam a genética que o nome, só por si, já anuncia.

Quando se tem à frente um dos “cantautores” que nos acompanham há mais de trinta anos, cujas canções dizem tudo o que sentimos, traduzindo igualmente os ares dos tempos que as viram nascer sem que com isso percam a actualidade - antes pelo contrário - não há nada para dizer.

Só ouvir o homem do mundo, cosmopolita, que conhece e viu países, gentes, paisagens, que eu provavelmente nunca verei e teve experiências que eu nunca terei – passando muito bem, obrigada!, ao lado de algumas delas…

Conheço de cor a sua obra, a que regresso sempre que preciso de “voltar a casa”, de me reencontrar, começando pela incontornável Susanne, a que usa os símbolos do Exército de Salvação, a que nos leva para o rio onde se ouvem os barcos e onde ela nos oferece chá e laranjas que vieram da China e com ela queremos viajar porque ela nos tocou a alma, passando pela Marianne de quem nos despedimos, pelo Partisan que nos convoca Georges Moustaki, outro cantautor dos sessenta mas que ficou pelo caminho, por In my Secret Life, em que estamos sempre sós e o nosso coração é de gelo, apesar da multidão que nos rodeia, por Alexandra leaving de quem ainda não nos despedimos mas de quem já sentimos a falta porque a sabemos perdida, para  no Chelsea Hotel descobrirmos jovens lendários e famosos - quiçá alter egos do meu convidado - que se amam mas fogem uns dos outros, por Hey, That's no way of saying good-bye em que há beijos cálidos e apaixonados e manhãs de amor sem fim. Podia falar de muitas outras - The stranger songBird on the wireHallelujahDance me to the end of love, e o resto da noite não seria suficiente para as ouvir a todas e delas todas falar.

Não esqueço os anos de chumbo, pouco inovadores, provavelmente coincidentes com os piores da sua conturbada vida pessoal e as várias travessias no deserto que terá empreendido, os álbuns inenarráveis, confrangedores, sem um fio condutor (à excepção, talvez, do tema "The Guests" - tocado nesta tournée pela primeira vez em décadas).

Uma década que só não foi perdida porque, qual Fénix, renasceu em 1988 com "I’m your man". Perfeição superlativa. Em I’m your man canta-nos a canção do bandido que pensa que qualquer mulher quer ouvir - ele será tudo o que quisermos que ele seja: amante, amigo, pai, médico, por nós rastejará, roubará, desaparecerá, e aquela voz envolvente, cálida, já não imaculada mas ainda límpida, faz-nos querer ouvir tais promessas vãs, sabendo embora o quão vigaristas são...

Nesse álbum, aborda  os temas polémicos dos anos 80, cuja actualidade e intemporalidade são, hoje mais do que nunca, por demais evidentes:  “Everyboy knows”, que nos fala da nova peste, que então estava a dar os primeiros passos e cujas devastadoras consequências ainda não se adivinhavam, e que nos grita que os ricos ficam sempre ricos e os pobres sempre pobres, e “First we take Manahattan (then we take Berlin)", cujo título, por si só, é toda uma declaração de intenções, poderiam hoje ser os hinos das manifs do dia 15 de um qualquer mês de uma qualquer cidade da Europa nestes tempos de perigo conturbado e inquieto…

Quando ambos retomámos o contacto com a realidade, servi um delicado chá branco - também ele vindo da China - observando todo o protocolo associado: escaldar o bule, ferver a água, tirar-lhe a temperatura para apenas a verter no bule quando descesse para os 96ºC, esperar 4 minutos e retirar o cesto do chá. Falámos de ninharias e trivialidades – dos vários tipos de chá, dos de folha miúda, fortíssimos, dos de folha grande, mais fracos, da delicadeza dos chás resultantes das primeiras e segundas apanhas (first and second flushes), dos domínios em altitude que se traduzem na produção de chás pálidos de subtil sabor, dos aromatizados como o Earl Grey (provavelmente o mais famoso conde do mundo…).

Ele contou-me então as experiências havidas e histórias caricatas das suas tournées; não são muitas as histórias porque as tournées são maratonas em que num dia se está numa cidade e dois dias depois noutra a 1000km de distância, e assim sucessivamente, sendo todo o tempo disponível guardado para recobrar forças. Mas nem por isso abandona a celebração do Sabath judeu que faz questão de preservar. Aflorei a sua badalada conversão ao budismo. O meu convidado sorriu com um esgar ligeiramente escarninho e, cortando delicadamente o assunto, retorquiu-me que o chá era efectivamente delicioso.

Percebi a mensagem – não iria haver revelações de estados de alma nem outras inconfidências: ele só diz o que quer e quer dizer pouco. Retive, pois, as perguntas que me queimavam os lábios - como, por exemplo, saber até que ponto conhecia a obra de LLorca para baptizar a filha com o apelido do poeta espanhol - e passei directamente ao bolo de maçã, estreia absoluta de uma receita da casa materna que adaptei para a macrobiótica e que segue no final da crónica.

Gostou do bolo. Eu também. A adaptação à macrobiótica correu bem. Imaginei-me, qual Vovó Donalda, rancheira  (muuuuito moderna e giraça) cozinhando bolos e tartes de maçãs, colhidas das árvores de uma qualquer quinta do Novo Mundo, enquanto escuto as músicas a que volto sempre - Cohen, Simon&Garfunkel - em conjunto e a solo -, Dylon, Brel, mas também Mozart e Händel, Bach e Vivaldi, Allegri e Palestrina, Puccini e Tchaikovsky, sem esquecer Rodrigo Leão & convidados -, leio os poetas e escritores das pradarias americanas - Whitman, Thoreau, Emmerson - e lavo os olhos com os quadros de Hopper ou os trabalhos de Rauschemberg, sem esquecer os grandes espaços da paisagem americana, que permitem a concretização de todos os sonhos, sonhos estes que perpetuamente se reciclam e renovam contra as marés da adversidade. O meu convidado é um filho desse Novo Mundo que se reinventa e recria e não cede à má fortuna. Quantos seriam capazes de, aos setenta e muitos (setenta e oito no seu caso), percorrer milhares de quilómetros para cantar três ou quatro concertos por semana, durante semanas a fio? E isto pelo quinto ano consecutivo! É verdade que a necessidade de pagar o buraco financeiro cavado pela contabilista que lhe fugiu com o dinheiro dos impostos e os acordos entretanto celebrados com os Serviços do IRS funcionarão como um poderoso incentivo mas a força da genética e a confiança e optimismo proverbiais do Novo Mundo são absolutamente determinantes.

Despedimo-nos em silêncio. Da janela, vi-o entrar no carro que o levaria para o merecido descanso de três semanas antes de iniciar a tournée americana, no dia 31 de Outubro, em Austin, Texas.

Quando me preparava para arrumar os despojos da ceia, descobri os seus discos e o seu livro de poemas esquecidos em cima dum armário. Enquanto os re-alinhava nos locais a que pertencem reparei que estavam, todos, autografados, pedido que não ousara formular.

Já devem ter adivinhado, claro, o meu convidado era Leonard Cohen. 

Sem comentários:

Enviar um comentário