De todos os meus irmãos, a Manelinha foi aquela com que tive maior proximidade e cumplicidade. Sendo uma mulherzinha quando nasci e uma adulta quando entrei na adolescência, só muito tarde tivemos uma relação de irmãs adolescentes – ríamos estupidamente de piadas a que só nós achávamos piada, telefonávamo-nos quase diariamente para contar o que nos tinha acontecido nas últimas 24 horas, e voltávamos a telefonar se por acaso acontecia algo de inesperado, um reencontro, uma arrelia, tirar uma dúvida sobre qualquer tolice que tinha acontecido há 10, 20, 30, 40 ou mais anos – sendo certo que, fazendo juz a uma saga muito nossa, estando embora de acordo quanto aos factos, raramente nos entendíamos em relação ao dia e hora em que teriam acontecido. Lembro com saudade dois fins de semana passados em Madrid e o que nos divertimos e rimos, lá está, estupidamente, com os pequenos nadas que nos aconteceram, como um banho da coluna de hidromassagem que a deixou com o cabelo escorrido e ar de gato esfolado ou das selfies que ela não sabia tirar e aí ambas parecíamos sem abrigo...
Hoje, passados que são quase quatro meses sobre o triste dia 15 de Fevereiro, continuo a pensar “tenho que contar à Manela” ou “o que a Manela se vai rir quando lhe contar”, depois vem a realidade e é mais um dia em que não vou poder contar-lhe nem com ela poder contar. Sim porque a Manela era o meu porto de abrigo, a pessoa a quem eu confiava tudo e a quem pedia conselho. Eu e muitos outros, dos que me confidenciaram a falta que ela lhes faz...
Têm-me
passado pelas mãos fotografias e escritos que mostram o mundo em que crescemos,
sempre mitificado como “aqueles é que eram tempos” e “tão felizes que
nós éramos”. Eu olho para esses testemunhos e vejo neles a perfeição do cliché,
congelado e suspenso no tempo, em que,
presos numa profecia que tinha que se cumprir, se esperava que nos comportássemos
de acordo com os papéis que à nascença nos tinham sido distribuídos.
Só que
não foi assim.
(...)
Disse-me
a Manelinha, na última vez que falámos, que tudo visto e ponderado, fazia da
sua vida um balanço positivo, só não estava à espera de ter que nos deixar tão
cedo. Sim, as nossas vidas foram muito melhores do que as do papel couché das
fotografias que guardo, porque foram vidas vividas com alegrias e desgostos e
arrelias e preocupações, foram, enfim, vidas e não argumentos de cinema.
Hoje,
como em cada dia desde que naquele 12 de Fevereiro soube a sentença brutal que
lhe estava destinada, continuo incrédula, a viver numa bolha em que a minha
irmã ainda cá está e espero que este dia e esta cerimónia me ajudem, nos
ajudem, a aceitar que a Manelinha já não está fisicamente entre nós, embora
esteja sempre nos nossos pensamentos, corações e orações.
We'll meet again
Porto, 2021.06.05
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