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sábado, 30 de julho de 2022

DO ROSSIO ATÉ À SÉ

Comecei o percurso no fim, decidida a tomar o pequeno almoço no Nicola, esperei que abrisse (um café da Baixa que abre às 10h00 é muito mau sinal), olhei os croissants e apesar de nada terem a ver com os de há trinta anos, escolhi um, sabendo que me ia arrepender (arrependi-me, não prestava). Salvou-se o ambiente déco, não obstante a sinaléctica de afastamento, dito social, que estragava o chão de mármore. 

Já Bocage não sou! (…) Rasga meus versos, crê na eternidade!

Dali atravesso a praça em direcção a S. Domingos, o largo ainda vazio, em contraste com as memórias que guardo da Babel que aquilo era na primeira vez que lá passei, corria o ano de 1986. A igreja é uma velha conhecida, as paredes cor do fogo que a destruiu fazem jus ao passado e guardam memória das muitas atrocidades cometidas pelos dominicanos do século XVI. 

… alguns cristãos-novos também estavam na igreja e viram e ouviram o que os homens e mulheres falavam sobre esses sinais milagrosos; um dos cristãos-novos disse aos homens e mulheres em público, «como um pedaço de madeira seca pode fazer milagre, pegue água e jogue nela que logo se apaga»; então, as mulheres ficaram coléricas contra ele, o atacaram e o levaram diante da porta da igreja, e diante da porta as mulheres começaram a brigar e a bater nele», «você não deve falar contra um sinal milagroso assim grande e contra o crucifixo; as mulheres quase o mataram a pancadas; então vieram alguns homens e garotos que ajudaram as mulheres a matá-lo completamente e o levaram a uma praça grande em frente da igreja; então, juntou-se um outro cristão-novo ou judeu que viu que o mataram e disse. «Por que vocês mataram esse homem», o povo disse, «você com certeza também é um dos malvados»
Relato da chacina da Páscoa de 1506, relatada por um observador alemão (REVISTA LUSÓFONA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – nº21 (1ºS. - 2018) – tradução de Rita Ribeiro Voss.

Uma árvore defronte da igreja guarda uma máscara cirúrgica. "Sign of times",
como cantou Prince a propósito doutra pandemia.

Uma manteigaria que vende vinhos, paredes meias com a casa que vende bacalhaus e azeites, a loja do hortelão na esquina, dão a ideia do sucesso dos comércios a que se dedicam. Ao contrário do Braz e Braz, fechado há muito. Atravesso a Praça da Figueira, onde outrora houve uma praça ou mercado, vejo que a Jau – onde, nesses anos oitenta, comprei inúmeras peças VA decoração Margão, a par de cristais Atlantis e prendas de casamento – despareceu, na Rua dos Condes de Monsanto verifico numa montra que, a par da cortiça, das sardinhas e dos azulejos, há agora máscaras para turistas. Subo a Rua da Madalena, confirmo que a ervanária ainda está no mesmo local, assim como a loja dos produtos ortopédicos – há necessidades que não se satisfazem nos Colombos ou Dolces Vitas da vida. Onde houve um Bora-Bora há agora um Club Noir com mau ar. 



Galos de Barcelos, azulejos, máscaras e as janelas de Lisboa


Já tivemos dias melhores…

Mais adiante deparo-me com a mercearia dos Açores e anoto mentalmente que hei-de voltar – não é a mesma coisa, mas sempre não preciso de apanhar um avião para comprar os chás do Porto Formoso. 

Uma vida depois, o meu coração continua a bater por escadas e calçadas, é doença crónica…

As Escadas de S. Crispim lembram-me que me apaixonei pela minha primeira casa ainda antes de a conhecer, só de pensar que ficava na muito charmosa (nada prática) Calçada do Lavra (não ficava, e ainda bem!) e que a justiça é difícil de alcançar, daí que o Supremo Tribunal se localize lá bem no topo, numa casa que não me importaria de chamar minha (lá está – calçada e escadas = poesia e romantismo). 

Os Venerandos Conselheiros não podem apanhar pingos de chuva, só passar por eles…

Chego à Costa do Castelo (à esquerda) e sigo pela Rua do Milagre de Santo António que, dada a fama de interesseiro do Santo, deve ter sido pago a peso de ouro... 

Oh meu rico  Santo António, dito Santo milagreiro,
Se milagres fazer queres,
Tira as rachas das paredes
Mas não me peças dinheiro...

Procuro a Rua da Saudade, chego ao número 23, prédio onde moraram o Ary e o O’Neill e sinto-me a fazer a figura da japonesa que ajudei a descobrir a casa onde morou Wenceslau de Morais, ali no Torel, ao cimo da Calçada do Lavra - casa horrorosa, diga-se, verde encardido com janelas de alumínio, nada a ver com o charmoso prédio de azulejos deste número 23. Ao lado, reparo na muito azul e branca casa do FCP e penso que mais adequada seria que fosse uma casa do SCP ou mesmo do SLB dadas as saudades que devem ter de um dia terem sido grandes. 

minha laranja amarga e doce,  meu poema  feito de gomos de saudade,  minha pena  pesada
e leve  secreta e pura  minha passagem para o breve breve  instante da loucura.

Subo aos Loios, onde em tempos namorei uma casa, que mantém o bom aspecto de então. Prossigo para o Chão do Castelo, sem saber que tinha que ir para lá, desço, volto a subir em busca do Recolhimento. Ruas depuradas, limpas de turistas, só gentios, nem por isso satisfeitos. O Miradouro do Recolhimento recolheu e está inacessível ou fui eu que não consegui lá chegar. Desço para a rua do Funil – e penso a que se deverá o nome. Pelo caminho duas inscrições chamam-me a atenção: “Have a nice day” e “Feliz Natal”. Não há, graças a Deus, arco-íris pirosos a dizer que vai ficar tudo bem (não vai, é mentira, ainda que dita muitas vezes). 

Thank u!                                                      





Natal é quando a pessoa humana quiser.
      
Faço uma finta ao Maldonado (fica para a próxima…) e subo às Portas do Sol, aflijo-me com tanto betão que além de feio concentra o calor, e desço depressa em direcção à Sé, passando em Santa Luzia. Fotografo algumas lojas – a das alcofas porque há muitos anos, era eu pobrezinha, uma alcofa fazia-me as vezes de carteira, a Xi-Coração porque nela foi comprado o chapéu que trago, a das antiguidades pelas sombras e reflexos. 

Olha a carteira da feira!


Tic tac, bric a brac.

Levava tudo...

No Limoeiro, uma árvore, que na verdade são várias, e uma buganvília que entrelaça fúcsias e violetas, convocam a diversidade. Há tuk-tuks na rua e já se vêm alguns turistas. 

Cabemos todos.

Nas janelas, a roupa dança ao som do vento. 

Gervásio Lobato escreveu "Lisboa em camisa", em fotografo a Lisboa em T-shirt

JANELAS, PORTAS, FACHADAS DE LISBOA – MALUDA passou por aqui!








Aqui há Frida!

Por fim, a Sé, que conheço mal (e não é hoje que ficarei a conhecer melhor), acho que só lá estive em concertos, uma Paixão de Bach e dois concertos de órgão. Está calor, muito calor. Começo a descer em direcção à rua de S. Mamede para alcançar a Madalena, voltar a S. Domingos, a esta hora já com fauna muito heroin mas pouco chic,  e, antes de chegar ao destino, reparo que a estátua de D. José está perfeitamente enquadrada no Arco da Rua Augusta – que seria assim chamada em honra de Sua Augusta Majestade.


Texto escrito e fotografias tiradas no âmbito da actividade "Escrever sai à rua", da escola EscreverEscrever, Julho 2020

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