Comecei o percurso no fim, decidida a tomar o pequeno almoço no Nicola, esperei que abrisse (um café da Baixa que abre às 10h00 é muito mau sinal), olhei os croissants e apesar de nada terem a ver com os de há trinta anos, escolhi um, sabendo que me ia arrepender (arrependi-me, não prestava). Salvou-se o ambiente déco, não obstante a sinaléctica de afastamento, dito social, que estragava o chão de mármore.
Já Bocage não sou! (…)
Rasga meus versos, crê na eternidade!
Dali atravesso a
praça em direcção a S. Domingos, o largo ainda vazio, em contraste com as
memórias que guardo da Babel que aquilo era na primeira vez que lá passei, corria o ano de
1986. A igreja é uma velha conhecida, as paredes cor do fogo que a destruiu
fazem jus ao passado e guardam memória das muitas atrocidades cometidas pelos
dominicanos do século XVI.
Relato da chacina da Páscoa de 1506, relatada por um observador alemão (REVISTA LUSÓFONA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – nº21 (1ºS. - 2018) – tradução de Rita Ribeiro Voss.
| Uma árvore defronte da igreja guarda uma máscara cirúrgica. "Sign of times", como cantou Prince a propósito doutra pandemia. |
Uma manteigaria que vende vinhos, paredes meias
com a casa que vende bacalhaus e azeites, a loja do hortelão na esquina, dão a
ideia do sucesso dos comércios a que se dedicam. Ao contrário do Braz e Braz,
fechado há muito. Atravesso a Praça da Figueira, onde outrora houve uma praça
ou mercado, vejo que a Jau – onde, nesses anos oitenta, comprei inúmeras peças
VA decoração Margão, a par de cristais Atlantis e prendas de casamento –
despareceu, na Rua dos Condes de Monsanto verifico numa montra que, a par da
cortiça, das sardinhas e dos azulejos, há agora máscaras para turistas. Subo a
Rua da Madalena, confirmo que a ervanária ainda está no mesmo local, assim como
a loja dos produtos ortopédicos – há necessidades que não se satisfazem nos
Colombos ou Dolces Vitas da vida. Onde houve um Bora-Bora há agora um Club Noir
com mau ar.
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Galos de Barcelos, azulejos, máscaras e as janelas de Lisboa |
Já tivemos dias
melhores… |
Mais adiante deparo-me com a mercearia dos Açores e anoto mentalmente que hei-de voltar – não é a mesma coisa, mas sempre não preciso de apanhar um avião para comprar os chás do Porto Formoso.
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| Uma vida depois, o meu coração continua a bater por escadas e calçadas, é doença crónica… |
As Escadas de S.
Crispim lembram-me que me apaixonei pela minha primeira casa ainda antes de a
conhecer, só de pensar que ficava na muito charmosa (nada prática) Calçada do Lavra (não
ficava, e ainda bem!) e que a justiça é difícil de alcançar, daí que o
Supremo Tribunal se localize lá bem no topo, numa casa que não me importaria de
chamar minha (lá está – calçada e escadas
= poesia e romantismo).
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| Os Venerandos Conselheiros não podem apanhar pingos de chuva, só passar por eles… |
Chego à Costa do Castelo (à esquerda) e sigo pela
Rua do Milagre de Santo António que, dada a fama de interesseiro do Santo, deve
ter sido pago a peso de ouro...
Oh meu rico Santo António, dito Santo milagreiro,
Se milagres fazer queres,
Tira as rachas das paredes
Mas não me peças dinheiro...
Procuro a Rua da Saudade, chego ao número 23,
prédio onde moraram o Ary e o O’Neill e sinto-me a fazer a figura da japonesa
que ajudei a descobrir a casa onde morou Wenceslau de Morais, ali no Torel, ao
cimo da Calçada do Lavra - casa horrorosa, diga-se, verde encardido com janelas
de alumínio, nada a ver com o charmoso prédio de azulejos deste número 23. Ao
lado, reparo na muito azul e branca casa do FCP e penso que mais adequada seria
que fosse uma casa do SCP ou mesmo do SLB dadas as saudades que devem ter de um
dia terem sido grandes.
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minha laranja amarga e doce, meu poema feito de gomos de saudade, minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve breve instante da loucura. |
Subo aos Loios, onde em tempos namorei uma casa, que
mantém o bom aspecto de então. Prossigo para o Chão do Castelo, sem saber que
tinha que ir para lá, desço, volto a subir em busca do Recolhimento. Ruas
depuradas, limpas de turistas, só gentios, nem por isso satisfeitos. O
Miradouro do Recolhimento recolheu e está inacessível ou fui eu que não consegui
lá chegar. Desço para a rua do Funil – e penso a que se deverá o nome. Pelo caminho
duas inscrições chamam-me a atenção: “Have a nice day” e “Feliz Natal”. Não há,
graças a Deus, arco-íris pirosos a dizer que vai ficar tudo bem (não vai, é mentira, ainda que dita muitas
vezes).
Faço uma finta ao Maldonado (fica para a próxima…) e subo às Portas
do Sol, aflijo-me com tanto betão que além de feio concentra o calor, e desço
depressa em direcção à Sé, passando em Santa Luzia. Fotografo algumas lojas – a
das alcofas porque há muitos anos, era eu pobrezinha, uma alcofa fazia-me as
vezes de carteira, a Xi-Coração porque nela foi comprado o chapéu que trago, a
das antiguidades pelas sombras e reflexos.
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| Tic tac, bric a brac. |
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| Levava tudo... |
No Limoeiro, uma árvore, que na
verdade são várias, e uma buganvília que entrelaça fúcsias e violetas, convocam
a diversidade. Há tuk-tuks na rua e já se vêm alguns turistas.
Nas janelas, a roupa dança ao som do vento.
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| Gervásio Lobato escreveu "Lisboa em camisa", em fotografo a Lisboa em T-shirt |
JANELAS,
PORTAS, FACHADAS DE LISBOA – MALUDA passou por aqui!
Por fim,
a Sé, que conheço mal (e não é hoje que ficarei a conhecer melhor), acho que só
lá estive em concertos, uma Paixão de Bach e dois concertos de órgão. Está
calor, muito calor. Começo a descer em direcção à rua de S. Mamede para
alcançar a Madalena, voltar a S. Domingos, a esta hora já com fauna muito heroin mas pouco chic, e, antes de chegar ao
destino, reparo que a estátua de D. José está perfeitamente enquadrada no Arco
da Rua Augusta – que seria assim chamada em honra de Sua Augusta Majestade.
Texto escrito e fotografias tiradas no âmbito da actividade "Escrever sai à rua", da escola EscreverEscrever, Julho 2020















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