A caminhada pelos miradouros de Lisboa em noite de lua cheia começou no Rossio,
onde no tempo dos romanos havia um hipódromo e, ao que parece, terão ocorrido aquelas
lutas que, no fim, se decidiam com os polegares (hoje também os usamos mas são
só emojis). Atravessamos a Praça da Figueira, onde existiu um mercado albergado
numa construção de ferro e vidros, entretanto demolida, a praça transferida
para a Ribeira, esta última também substancialmente transformada em praça de lojas
e tasquinhas gourmet, nada que não tenha acontecido noutras latitudes.
Daqui, iniciamos a primeira subida, passando pela Igreja de S. Cristóvão e pela Calçada do Marquês de Tancos [pobre Marquês, soubesse ele ao que o seu nome viria a estar associado...], em direcção ao Chão do Loureiro, transformado em miradouro na sequência da construção dum parque de estacionamento e tornado famoso pelo restaurante fashion que lá se instalou. Por mim, prefiro o do lado, o S. Jorge, menos fashion e que me convoca melhores recordações, nos idos do ano 2000.
| Ruínas do Carmo vistas do Chão do Loureiro |
Prosseguimos pela Costa do
Castelo, passamos ao Chapitô, cujo restaurante, que também me traz boas recordações,
tem uma vista deslumbrante. Por todo o lado, restaurantes e bares abertos, num
frenesim de que já não me lembrava depois de dois anos de “lockdowns”.
Alcançamos o Largo dos Loios, onde em tempos namorei uma casa e subimos a Rua de Santiago.
| O caminho português de Santiago começa nesta Igreja |
Deixando para trás o Limoeiro, eis-nos em Santa Luzia, a qual, como protectora da visão que é, nos oferece uma vista sobre um rio banhado por uma lua cheia de pecado. Mesmo em frente, mas em terra firme, a Igreja de Santo Estêvão, virada a norte, homenageando a Inglaterra natal do primeiro bispo de Lisboa, Gilbert of Hastings. Só o navio cruzeiro, medonho no seu gigantismo, desfeava e apoucava a paisagem.
Nova subida, desta vez à Cerca
Moura, também dita Cerca Velha, nova vista de cortar a respiração sobre o
casario de Alfama, a Igreja e o Convento de S. Vicente, este último ampliado no
tempo de Filipe I, pelo mesmo arquitecto do Escorial, e as semelhanças são
evidentes.
Seguimos para a Senhora do Monte, em cuja capela costumava ser fino casar ou baptizar filhos.
| Também quero... |
Descemos agora, as Escadinhas
das Olarias (eu diria Escadonas, mas enfim...) e aterramos na Rua do Benformoso,
que nada tem a ver com aquela de há trinta anos, cheia de restaurantes,
sobretudo indianos, e ao que ouvi dizer, de restaurantes que funcionam em
andares onde só entram iniciados e conhecidos. O frenesim e as especiarias
perfumam o ambiente.
| Jardins suspensos das Olarias |
| Sob a madressilva |
| Do outro lado, na Rua da Palma, uma antiga garage recuperada destilava todo o charme retrô dos anos 30. |
Atravessamos a Rua da Palma,
subimos ao Desterro onde ainda funciona a Escola Primária n.º 1, fundada em
1875, um cadinho de multi-culturalidade, e dali seguimos para o Torel, esse
Torel das vivendas maravilhosas, incluindo aquela que, desabitada quando a
conheci, é hoje casa de segredos judiciários.
| Quantas histórias não terá o torreão para contar... |
Passamos à e iniciamos a descida da Calçada do Lavra, a qual mantém os 225 degraus que tinha nos tempos em que a descia e subia todos os dias, mas ganhou um ar cosmopolita com as bicicletas amarradas aos corrimões. Os donos devem ter uns braços muito fortes para as carregarem calçada abaixo ou calçada acima, e vice-versa ao fim do dia, pois ali não devem chegar dando ao pedal...
Vencida a Avenida da Liberdade, é tempo de ascender à Glória, homeopaticamente e aos poucos, que a Calçada é forte e longa, fazemos a primeira etapa pela Rua de Santo António da Glória, e terminamos as hostilidades na Calçada propriamente dita, que nos conduz ao Jardim de S. Pedro de Alcântara.
| Olha se tivéssemos que voltar à casa de partida e começar tudo outra vez como no jogo da glória... Comprava-as todas... |
| Saltando à macaca na Glória ou a glória de voltar a ser criança. |
| S. Pedro de Alcântarra - Vista frontal sobre o Torel. |
.
| O ardina, o melhor do seu tempo, que preferiu ser imortalizado em estátua do que receber um relógio de ouro. |
| Bairro Alto, o da movida dos anos 80, cheio de restaurantes, bares e, já àquela hora, antecipando os botellones de que os locais tanto gostam... |
Na Rua do Loreto, a casa das velas exibe ovos e coelhinhos pascais, uma novidade
que não existia nos tempos que por lá andei.
| Outra torre que deve ter belos segredos, esta do antigo Ramiro Leão |
Santa Catarina é o destino
final, lá coabitam um maravilhoso hotel de charme, um restaurante / esplanada cheio
de bons “remédios”, ou não fosse o do Museu da Farmácia, e, claro, o Adamastor.
O mostrengo que está no fim do
mar
Na noite de breu ergueu-se a
voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não
desvendo,
Meus tectos negros do fim do
mundo?”
(...)
“De quem são as velas onde me
roço?
De quem as quilhas que vejo e
ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou
três vezes,
Três vezes rodou, imundo e
grosso,
“Quem vem poder o que só eu
posso,
Que moro onde nunca ninguém me
visse
E escorro os medos do mar sem
fundo?”
(...)
Fernando Pessoa - Mensagem
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