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sexta-feira, 18 de março de 2022

FEITIÇO DA LUA

 


A caminhada pelos miradouros de Lisboa em noite de lua cheia começou no Rossio, onde no tempo dos romanos havia um hipódromo e, ao que parece, terão ocorrido aquelas lutas que, no fim, se decidiam com os polegares (hoje também os usamos mas são só emojis). Atravessamos a Praça da Figueira, onde existiu um mercado albergado numa construção de ferro e vidros, entretanto demolida, a praça transferida para a Ribeira, esta última também substancialmente transformada em praça de lojas e tasquinhas gourmet, nada que não tenha acontecido noutras latitudes.

Daqui, iniciamos a primeira subida, passando pela Igreja de S. Cristóvão e pela Calçada do Marquês de Tancos [pobre Marquês, soubesse ele ao que o seu nome viria a estar associado...], em direcção ao Chão do Loureiro, transformado em miradouro na sequência da construção dum parque de estacionamento e tornado famoso pelo  restaurante fashion que lá se instalou. Por mim, prefiro o do lado, o S. Jorge, menos fashion e que me convoca melhores recordações, nos idos do ano 2000. 

Ruínas do Carmo vistas do Chão do Loureiro


Prosseguimos pela Costa do Castelo, passamos ao Chapitô, cujo restaurante, que também me traz boas recordações, tem uma vista deslumbrante. Por todo o lado, restaurantes e bares abertos, num frenesim de que já não me lembrava depois de dois anos de “lockdowns”.

Alcançamos o Largo dos Loios, onde em tempos namorei uma casa e subimos a Rua de Santiago.

O caminho português de Santiago começa nesta Igreja

Deixando para trás o Limoeiro, eis-nos em Santa Luzia, a qual, como protectora da visão que é, nos oferece uma vista sobre um rio banhado por uma lua cheia de pecado. Mesmo em frente, mas em terra firme, a Igreja de Santo Estêvão, virada a norte, homenageando a Inglaterra natal do primeiro bispo de Lisboa, Gilbert of Hastings. Só o navio cruzeiro, medonho no seu gigantismo, desfeava e apoucava a paisagem.



Nova subida, desta vez à Cerca Moura, também dita Cerca Velha, nova vista de cortar a respiração sobre o casario de Alfama, a Igreja e o Convento de S. Vicente, este último ampliado no tempo de Filipe I, pelo mesmo arquitecto do Escorial, e as semelhanças são evidentes.




Escalamos a Calçada da Graça e chegamos ao respectivo Miradouro, a Igreja é bonita, o Miradouro tem uma esplanada simpática que enfrenta a colina de Santana.



Seguimos para a Senhora do Monte, em cuja capela costumava ser fino casar ou baptizar filhos.

Também quero...


Descemos agora, as Escadinhas das Olarias (eu diria Escadonas, mas enfim...) e aterramos na Rua do Benformoso, que nada tem a ver com aquela de há trinta anos, cheia de restaurantes, sobretudo indianos, e ao que ouvi dizer, de restaurantes que funcionam em andares onde só entram iniciados e conhecidos. O frenesim e as especiarias perfumam o ambiente.


Jardins suspensos das Olarias

Sob a madressilva

Movida bem-formosa


Do outro lado, na Rua da Palma, uma antiga garage recuperada destilava todo o charme retrô dos anos 30.

Atravessamos a Rua da Palma, subimos ao Desterro onde ainda funciona a Escola Primária n.º 1, fundada em 1875, um cadinho de multi-culturalidade, e dali seguimos para o Torel, esse Torel das vivendas maravilhosas, incluindo aquela que, desabitada quando a conheci, é hoje casa de segredos judiciários.

Casa onde nasceu Wenceslau de Morais – facto que fiquei a saber quando, por lá deambulando, uma japonesa me perguntou onde ficava [imagino a sua frustração
quando viu uma casa pintada de verde-feio e sujo e caixilhos de alumínio]

Quantas histórias não terá o torreão para contar... 

Passamos à  e iniciamos a descida da Calçada do Lavra, a qual mantém os 225 degraus que tinha nos tempos em que a descia e subia todos os dias, mas ganhou um ar cosmopolita com as bicicletas amarradas aos corrimões. Os donos devem ter uns braços muito fortes para as carregarem calçada abaixo ou calçada acima, e vice-versa ao fim do dia, pois ali não devem chegar dando ao pedal...





 


Vencida a Avenida da Liberdade, é tempo de ascender à Glória, homeopaticamente e aos poucos, que a Calçada é forte e longa, fazemos a primeira etapa pela Rua de Santo António da Glória, e terminamos as hostilidades na Calçada propriamente dita, que nos conduz ao Jardim de S. Pedro de Alcântara.







Olha se tivéssemos que voltar à casa de partida e começar tudo outra
vez como no jogo da glória...



Comprava-as todas...


Saltando à macaca na Glória ou a glória de voltar a ser criança.




S. Pedro de Alcântarra - Vista frontal sobre o Torel.

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O ardina, o melhor do seu tempo, que preferiu ser imortalizado
 em estátua do que receber um relógio de ouro.

Bairro Alto, o da movida dos anos 80, cheio de restaurantes, bares e, já
àquela hora, antecipando os 
botellones de que os locais tanto gostam...


Na Rua do Loreto, a casa das velas exibe ovos e coelhinhos pascais, uma novidade
que não existia nos tempos que por lá andei. 


Outra torre que deve ter belos segredos, esta do antigo Ramiro Leão



Santa Catarina é o destino final, lá coabitam um maravilhoso hotel de charme, um restaurante / esplanada cheio de bons “remédios”, ou não fosse o do Museu da Farmácia, e, claro, o Adamastor.



O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: “Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?”

(...)

“De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?”

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou, imundo e grosso,

“Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?”

(...)

                        Fernando Pessoa - Mensagem




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