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terça-feira, 15 de março de 2022

ANA

 

Ana era a “hit girl” do momento, bonita, dona de dois olhos azeitonados, rosto oval, cabelos pretos liso, invariavelmente apanhados numa trança, elegante, talvez um pouco magra demais, sempre aprumada, ao invés de andar à moda, ela ditava-a, inteligente e culta, cursara Clássicas e Histórico-Filosóficas, estudara inglês e francês muito para além do imposto pelo ensino oficial, lera avidamente os livros que havia na casa do pais, na dos avós, na dos padrinhos. Beneficiando do ar dos tempos, que às mulheres já permitia que estudassem e lessem sem que por tal fossem crismadas de esquisitas ou mesmo perigosas, e do ambiente liberal vivido em casa, tinha até ao casamento sido dispensada dos lavores, da cozinha, da puericultura e afins.

O casamento foi rápido. O marido – quinze anos mais velho, advogado conceituado, viúvo dum casamento que terminara envolto em mistério [da mulher dizia-se que morrera no parto mas também que se suicidara ou ainda que fora morta às mãos dum amante, consentido pelo marido, já então impotente], mistério cultivado pelo próprio ao recusar activamente falar sobre o assunto - tinha o charme que se insiste que têm dos homens de quarenta anos, de que as mulheres nunca beneficiam, pois dizia eu, o marido encantou-a com versos sussurrados de Baudelaire, ausente de todas as atrás referidas Bibliotecas, daiquiris e slows lascivos ao som de Gainsbourg e Jane Birkin, transgressões absolutas num Porto conservador e praticante da moral da Família Inglesa e das Pupilas do Senhor Reitor dum Júlio Dinis falecido há quase um século.

Ninguém nunca soube o que se passara na lua de mel, gozada nas Américas – novidade absoluta num meio em que as meninas sonhavam com Veneza, Paris ou Roma, mas se contentavam com ir a Lisboa, quando muito à Madeira – mas para todos era visível que Ana regressara um tudo nada mais magra, com olhos um tudo nada maiores e mais brilhantes, com olheiras até então inexistentes. Tudo foi levada à conta da mudança de estado e da excitação dos States, de Nova Iorque, de Chicago, de S. Francisco, das muitas flores e do muito love, nunca ninguém sonhando, sequer, que talvez houvesse algumas outras coisas cujo nome ainda mal se sabia no Portugal de então.

O marido embrenhou-se de novo nos casos, não de tribunal, não era essa a praia dele, mas na advocacia de negócios, rendia mais e dependia apenas dele.

E em Ana continuava a acentuar-se a cada vez mais evidente magreza, o brilho dos olhos, as olheiras profundas. As leituras continuavam, as reuniões diletantes também, mas tudo se consumia num sem propósito que lhe esvaziava o fulgor. Ana já não era “hit”, estava magrérrima, ao estilo heroin chic só celebrado uma vintena de anos depois, os olhos perderam o brilho, o cabelo teve que ser cortado cada vez mais curto para encher o rosto, a roupa de bom corte não assentava nos ossos.

Um dia Ana conheceu um dos clientes do marido, um russo descendente de russos brancos, olhos azuis, tão azuis como os do Vronsky da sua homónima Karenina, e por ele se perdeu, mais do que já se perdera da Ana que um dia fora.

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