Ana
era a “hit girl” do momento, bonita, dona de dois olhos azeitonados, rosto
oval, cabelos pretos liso, invariavelmente apanhados numa trança, elegante,
talvez um pouco magra demais, sempre aprumada, ao invés de andar à moda, ela
ditava-a, inteligente e culta, cursara Clássicas e Histórico-Filosóficas,
estudara inglês e francês muito para além do imposto pelo ensino oficial, lera
avidamente os livros que havia na casa do pais, na dos avós, na dos padrinhos.
Beneficiando do ar dos tempos, que às mulheres já permitia que estudassem e lessem
sem que por tal fossem crismadas de esquisitas ou mesmo perigosas, e do
ambiente liberal vivido em casa, tinha até ao casamento sido dispensada dos
lavores, da cozinha, da puericultura e afins.
O
casamento foi rápido. O marido – quinze anos mais velho, advogado conceituado,
viúvo dum casamento que terminara envolto em mistério [da mulher dizia-se que
morrera no parto mas também que se suicidara ou ainda que fora morta às mãos
dum amante, consentido pelo marido, já então impotente], mistério cultivado
pelo próprio ao recusar activamente falar sobre o assunto - tinha o charme que
se insiste que têm dos homens de quarenta anos, de que as mulheres nunca
beneficiam, pois dizia eu, o marido encantou-a com versos sussurrados de
Baudelaire, ausente de todas as atrás referidas Bibliotecas, daiquiris e slows
lascivos ao som de Gainsbourg e Jane Birkin, transgressões absolutas num Porto conservador
e praticante da moral da Família Inglesa e das Pupilas do Senhor Reitor dum
Júlio Dinis falecido há quase um século.
Ninguém
nunca soube o que se passara na lua de mel, gozada nas Américas – novidade
absoluta num meio em que as meninas sonhavam com Veneza, Paris ou Roma, mas se
contentavam com ir a Lisboa, quando muito à Madeira – mas para todos era
visível que Ana regressara um tudo nada mais magra, com
olhos um tudo nada maiores e mais brilhantes, com olheiras até então
inexistentes. Tudo foi levada à conta da mudança de estado e da excitação
dos States, de Nova Iorque, de Chicago, de S. Francisco, das muitas flores e do
muito love, nunca ninguém sonhando, sequer, que talvez houvesse algumas outras
coisas cujo nome ainda mal se sabia no Portugal de então.
O
marido embrenhou-se de novo nos casos, não de tribunal, não era essa a praia
dele, mas na advocacia de negócios, rendia mais e dependia apenas dele.
E em
Ana continuava a acentuar-se a cada vez mais evidente magreza, o brilho dos
olhos, as olheiras profundas. As leituras continuavam, as reuniões diletantes
também, mas tudo se consumia num sem propósito que lhe esvaziava o fulgor. Ana
já não era “hit”, estava magrérrima, ao estilo heroin chic só celebrado uma
vintena de anos depois, os olhos perderam o brilho, o cabelo teve que ser
cortado cada vez mais curto para encher o rosto, a roupa de bom corte não
assentava nos ossos.
Um dia
Ana conheceu um dos clientes do marido, um russo descendente de russos brancos,
olhos azuis, tão azuis como os do Vronsky da sua homónima Karenina, e por ele
se perdeu, mais do que já se perdera da Ana que um dia fora.
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